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A hegemonia quimérica (Viriato Soromenho Marques, in Diário de Notícias, 12/08/2024)

 

A hegemonia quimérica

(Viriato Soromenho Marques, in Diário de Notícias, 12/08/2024)

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Aguerra aguardada no grande Médio Oriente, imposta por Telavive (o aliado dependente) a Washington (a superpotência), desafia todos os fundamentos da teoria das grandes potências. Na última década, a literatura norte-americana, a partir de um inspirado artigo de 2012 do professor Graham T. Allison (n. 1940), tem revisitado o clássico livro de Tucídides (460-400 a.C.) História da Guerra do Peloponeso (trd. Rosado Fernandes, Gulbenkian).

A tese central consiste na generalização da bipolaridade Esparta-Atenas, na Grécia Antiga, para outras situações históricas de luta entre duas potências (e alianças) para manter ou conquistar hegemonia. Essa grelha de leitura permitiria prever a quase inevitabilidade de uma guerra, em particular, entre os EUA (potência dominante) e a China (potência desafiante).

O erro dessa famosa “armadilha de Tucídides” reside numa excessiva simplificação deste mundo plural e caótico. O verdadeiro poderio norte-americano não coincide com o período posterior ao desmembramento da URSS (1991), mas ocorreu sim na década posterior à II Guerra Mundial.

Nessa altura, os EUA detinham cerca de metade do PIB mundial, o exclusivo da arma atómica (até 1949), uma capacidade de construção das infraestruturas institucionais (ONU, FMI, Banco Mundial) que iriam garantir a sua natureza híbrida de “República Imperial”, pedindo de empréstimo o título de um livro de 1973, da autoria de Raymond Aron: o exercício da dominação norte-americana não consistia (apenas) no uso da violência bélica, mas na capacidade de, através de iniciativas como o Plano Marshall, produzir bens públicos acessíveis aos povos que aderiam à sua esfera de influência.

A guerra aguardada no grande Médio Oriente, imposta por Telavive (o aliado dependente) a Washington (a superpotência), desafia todos os fundamentos da teoria das grandes potências. Na última década, a literatura norte-americana, a partir de um inspirado artigo de 2012 do professor Graham T. Allison (n. 1940), tem revisitado o clássico livro de Tucídides (460-400 a.C.) História da Guerra do Peloponeso (trd. Rosado Fernandes, Gulbenkian).

A tese central consiste na generalização da bipolaridade Esparta-Atenas, na Grécia Antiga, para outras situações históricas de luta entre duas potências (e alianças) para manter ou conquistar hegemonia. Essa grelha de leitura permitiria prever a quase inevitabilidade de uma guerra, em particular, entre os EUA (potência dominante) e a China (potência desafiante).

O erro dessa famosa “armadilha de Tucídides” reside numa excessiva simplificação deste mundo plural e caótico. O verdadeiro poderio norte-americano não coincide com o período posterior ao desmembramento da URSS (1991), mas ocorreu sim na década posterior à II Guerra Mundial.

Nessa altura, os EUA detinham cerca de metade do PIB mundial, o exclusivo da arma atómica (até 1949), uma capacidade de construção das infraestruturas institucionais (ONU, FMI, Banco Mundial) que iriam garantir a sua natureza híbrida de “República Imperial”, pedindo de empréstimo o título de um livro de 1973, da autoria de Raymond Aron: o exercício da dominação norte-americana não consistia (apenas) no uso da violência bélica, mas na capacidade de, através de iniciativas como o Plano Marshall, produzir bens públicos acessíveis aos povos que aderiam à sua esfera de influência.

Salazar, completamente insuspeito de simpatia pelos EUA, percebeu isso com rigor: “Os Estados Unidos sentem, como não sentiram em 1919, a responsabilidade da sua força e da sua vitória, e dá-se com eles o estranho caso de ascenderem ao primeiro plano da política mundial pelo seu próprio valor, sem dúvida, mas também impelidos, solicitados pela generalidade das nações. É quase uma hegemonia plebiscitada, tal a consciência da insegurança e da possibilidade de mergulhar numa catástrofe sem a ajuda da grande nação americana” (Discurso de Salazar em 09.11.1946).

A guerra na Ucrânia mostra que a Rússia não saiu da equação do futuro. Os BRICS são a prova deste tempo multipolar, percorrido por profundas e numerosas clivagens. Hoje, quem atrai aliados através de bens públicos, expressos na estratégia da Nova Rota da Seda, é a China.

Pensar que se pode ditar leis ao mundo apenas com armas, bases militares e sanções, mais com raiva do que razão, significa trocar a prudência do real por uma perigosa e quimérica grandeza.

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