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Na primeira pessoa: “Sim, eu já recebi RSI e nunca na vida fiz nada tão difícil, tão doloroso, tão humilhante…”

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Na primeira pessoa: “Sim, eu já recebi RSI e nunca na vida fiz nada tão difícil, tão doloroso, tão humilhante…”

Na primeira pessoa: “Sim, eu já recebi RSI e nunca na vida fiz nada tão difícil, tão doloroso, tão humilhante…”

A grande memória é a de que a porta não fechava, estava estragada. Nós entrávamos, sentávamo-nos no gabinete minúsculo e, cá fora, nos bancos corridos, ficavam as outras famílias, à espera de entrarem, também elas, para o confessionário da drª Helena. Íamos virar a vida do avesso ali dentro, e a porta não fechava. Em surdina, se possível, que só por termos de entrar ali a vergonha já era muita.

Tive quase tudo o que a vida podia dar, como se costuma dizer: muito mais oportunidades do que o comum dos mortais, tirei até um curso superior e tive também aquilo que não pedi e que me levou, aos 50 anos, ao gabinete da porta que não fechava, ao confessionário da drª Helena, para fazer a primeira entrevista de candidatura ao Rendimento Social de Inserção (RSI). Chegar até ali foi fácil, um dia atrás do outro, a gerir o que ia aparecendo e desaparecendo, mas estar ali foi das coisas mais difíceis que fiz em toda a vida – e fiz algumas.

Saí do Algarve sem trabalho e duas filhas, uma delas com síndrome de Down, e voltei para a casa da minha mãe. Tinha teto, água, luz, internet não, comida na mesa. Tinha os abonos das miúdas, uma bonificação por deficiência, da Clara, e a vida ia-se fazendo. Até que deixou de haver mãe em casa, deixou de haver comida na mesa, água e luz ia havendo, internet não, mas os abonos e a bonificação davam para a comida, e nós lá íamos continuando a viver. E fomos vivendo até a Francisca ir para a universidade. Pediu bolsa e a resposta que veio foi a de que não tínhamos rendimentos suficientes; os abonos não contam, pagam comida, mas não contam, como se não fossem dinheiro a sério, e tínhamos de pedir RSI, era o mínimo. Pedimos e fomos parar ao gabinete da porta que não fechava.

“Estava presa numa armadilha”

Pedir RSI é, só por si, um estigma. O subsídio dos pobres mais pobres, o último recurso de que só precisa e a que só deverá ter direito quem esteja socialmente desinserido, é isso que aquilo quer dizer. Mas também quer dizer ajuda, também quer dizer uma tábua de salvação, um respirar de alívio. Éramos três; de RSI tivemos 300 e poucos euros por mês. Davam para respirar sem ter medo de gastar demasiado oxigénio, mas era preciso passar pelo confessionário da drª Helena e mendigar ajuda.

Contar como tínhamos chegado até ali, porque não tínhamos um ar esfarrapado e até estávamos bem vestidinhas, mas não tínhamos dinheiro para viver; como eu estava presa numa armadilha de que não conseguia sair. Tinha a Clara, tenho a Clara, estava sozinha com ela, sem opções, sem trabalho, sem hipótese de ter trabalho. A Clara tinha acabado o 12º ano, não havia mais escola para ocupar o tempo, e o tempo era ocupado em casa, onde eu tinha de estar porque ela não pode ficar sozinha por muito tempo.

Tivemos RSI um ano e, no ano seguinte, foi preciso recomeçar tudo, voltar ao confessionário da drª Helena, a família toda, para voltar a assinar o tal contrato de inserção que nunca foi connosco discutido; eram só uns papéis que nos punham na frente. Assinem. Assina, Clara, e a Clara assinava, assina, Francisca, e a Francisca assinava. E eu assinava, eu teria assinado tudo.

O problema é que era julho. A Francisca estava na universidade, a mais de 200 quilómetros, tal como se tinha comprometido no tal contrato de inserção que tinha assinado, tinha exames e as viagens eram um rombo grande no orçamento, e a Francisca no segundo ano não foi fazer prova de vida e assinar o contrato que já tinha assinado e continuava válido. Passou, por esse ano passou, a drª Helena foi boazinha e perdoou a falta.

No terceiro ano, não foi assim. A Francisca voltou a faltar, pelas mesmíssimas razões, e por mais que eu explicasse que ela estava a cumprir com tudo o que lhe tinha sido pedido, estava no terceiro ano da faculdade, tinha boas notas, estava em exames, deslocar-se era caro e nós não tínhamos dinheiro para isso, a drª Helena não perdoou. Ou ela estava ali ou não estava, o resto pouco interessava, se estava a cumprir ou não, isso pouco interessava; ela tinha era de estar ali, no gabinete da porta estragada, a prestar vassalagem. Não estando, a solução era simples: saía do agregado familiar. À nossa frente, a drª Helena pegou no telefone e ligou não sei para onde, Coimbra, disse ela, como se fosse o juízo final, e retirou-a do agregado familiar. Saiu a Francisca e saiu um terço dos nossos rendimentos, como se fosse coisa pouca.

Pedir RSI é, só por si, um estigma. O subsídio dos pobres mais pobres, o último recurso a que só deverá ter direito quem estiver socialmente desinserido. Mas também quer dizer ajuda, também quer dizer uma tábua de salvação, também quer dizer um respirar de alívio. Éramos três, tivemos 300 e poucos euros por mês, davam para respirar sem ter medo de gastar demasiado oxigénio

Recorri, fiz queixa, voltei a recorrer. Esperei todos os dias por uma resposta que devia ter vindo em três meses, e ia fazendo contas ao que tinha sido cortado e como, quando ganhasse o recurso, receberia tudo junto, um dinheirão. Passaram três meses e quatro meses e um ano e dois anos, e a resposta não vinha. E, quando veio, como se não tivesse sido essencial, já não era precisa.

Sim, eu já recebi RSI, e sim, nunca na vida fiz nada tão difícil, tão doloroso, tão humilhante. Nunca me senti tão frágil na frente de quem tinha a minha vida, e a das minhas filhas, nas mãos. O que se recebe não é uma esmola, é vida, é dinheiro que não tínhamos se não fosse isso, é o oxigénio de que se precisa, é um direito que quase temos vergonha de exercer, mas é um direito, e que continue a sê-lo, porque esse direito, tão malfalado, tão degradado, tão vilipendiado, permite coisas tão simples como ir ao supermercado comprar pão e leite, e permitiu, também, à Francisca, apesar de ter sido riscada do agregado familiar, terminar a licenciatura, mesmo que eu tenha tido de passar por gabinetes com portas estragadas e rogar por ele desvirando as tripas.

Esta é a minha história, a história de quem recebeu RSI sem Mercedes à porta, mas foi a miséria do RSI que fez a diferença e possibilitou levar a vida para a frente outra vez.

(Há quem receba, e quem passe pelos gabinetes de portas estragadas, sem se incomodar com isso e não leve a mal as drªs Helenas da vida? Talvez sim, tal como haja quem peça crédito a um banco sem dar o mínimo de garantias, mas nunca ouvi dizer, e duvido de que o oiça, que, para evitar fraudes nos créditos, o melhor é que os bancos deixem todos de emprestar dinheiro.)

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