OPERAÇÃO ESMERALDA, REVISTA E ILUSTRADA C/TOTOS. A nota junto da foto do saguim ficou porque, neste conjunto, esteve inicialmente,também , A TATICA DO SAGUIM|
. OPERAÇÃO ESMERALDA
A MINHA INTERVENÇÃO
NA GUERRA, COMO DESTACADO, DUROU 26 DIAS DE SETEMBRO, DE 1961! FICOU ASSIM
REGISTADA:
FARÁ PARTE DO CONJUNTO DE ANGOLA “ A MINHA GUERRA “ PERIODO DE
1961 A 1963:
OPERAÇÃO ESMERALDA
(Tomada da Pedra Verde)
I
Tínhamos chegado a Luanda há menos de dois meses.
Estávamos já instalados, provisoriamente, como nos era dito, no
Grupo de Artilharia de Campanha de Luanda (GACL).
Falo do Pelotão de Comando e Serviços, cento e cinquenta e sete,
formado por vinte e homens: um major, um capitão, dois tenentes, um alferes,
dois sargentos e três furriéis. Todos eram dos Serviços, sendo o major e eu da
arma de artilharia.
O GACL , tal como outras unidades, Infantaria, Policia Militar,
Engenharia e Manutenção, ficavam situados na zona mais alta da cidade, onde
terminava a zona urbanizada e o planalto se prolongava a perder de vista, pelo
menos até Catete, a setenta quilómetros de Luanda.
A unidade de Artilharia era a mais virada para o centro da cidade
e a única que ficava junto à estrada, circular daquela zona da cidade, fazendo
a ligação com a avenida do aeroporto e o bairro de São Paulo e também aos
Hospitais, o Militar a escassos mil metros e o Civil do outro lado da cidade,
onde ficavam, o Palácio do Governador, o Quartel-general e o principal Deposito
de Fardamento e Manutenção.
Segundo soube mais tarde, toda a encosta que vai do GACL até à
Maianga, seria a duna ainda não consolidada, abandonada pelas marés quando
sucedeu a grande arrumação da crosta terrestre e com ela os mares, parceria que
sempre existiu, mas desde quando, não sei.
A duna, talvez para copiar o que se passou em Lisboa quando foram
urbanizados os terrenos, ficando conhecidas pelas Avenidas Novas, e o Bairro de
Alvalade; era este o nome dado à encosta – o Alvalade – que seria destinado a
construção de vivendas, para servir a classe média, já que a classe abastada e
há muitos anos instalada, foi urbanizada a colina do Miramar, com vivendas
atrás de muros como era habitual. Para alojar os do patamar inferior havia a
Vila Alice e, uns anos mais novas, as da Estrada de Catete, apenas de um dos
lados.
O Alvalade, duna de inacabada consolidação, só areia e terra
avermelhada com algumas pedras polidas e arredondadas, características de terem
andado, anos e anos a fio, a afagar as rochas e areias das beiras dos mares,
mal caía uma chuvada mais forte era ver tudo aquilo a descer, em tumultos de
lama até se precipitarem no rio seco; as primeiras invasões, as outras que
vinham a seguir encontravam o rio seco já cheio e, sem autorização ou simpatia,
atiravam-se como loucas pelas ruas da Maianga, onde morei vários meses após a
chegada a Luanda.
Estes rios secos também eu tinha em Castelo Melhor, dois que se
formavam a encosta do monte de Santa Bárbara, passando um deles pela fonte de
Santa Maria e o outro atravessava a povoação, desde as Pintas até se casar com
primeiro citado, no Vale do Seixo e seguirem depois, de mão dada, para a Coa,
assim designávamos o Rio Coa, que nascia lá para os lados de Pinhel.
Em Angola, talvez por uma questão de escala, os ribeiros eram
rios, secos ou molhados, assim como um aglomerado de “meia dúzia de casas era
vila e com mais umas quantas, eram cidades! Mania das grandezas, as
considerava. Coisas!
A guerra alterou muitos planos, das pessoas, que mal a coisa ficou
mais acesa, a seguir ao quatro de Fevereiro de sessenta e um, viajaram para
vários Países, nomeadamente Portugal, sem voo de regresso marcado; o Alvalade
entrou em férias e apenas uma das vivendas, inacabada e que seria a unidade
modelo e quando regressei a Portugal ainda era a filha única e órfã!
Outros edifícios foram construídos, fora do perímetro do Alvalade,
tais como o da Direcção Escolar, com sete ou oito pisos, também o cinema Avis e
outros mais pequenos, de habitação. No Alvalade, não, ficou em pousio, os
futuros habitantes tinham mudado de ares, tal como os que habitavam as da
Estrada de Catete, que alugavam, mobiladas, por mil e duzentos angolares!
II
Chegados do almoço há cerca de uma hora, seria o dia vinte e sete
de Agosto, do ano primeiro da nossa chegada, o cacimbo estava a ceder à época
das chuvas e mais calor, aparece o Orebe, o impedido do Comandante, major
Celestino da Cunha Rodrigues, que, após a saudação habitual, uma continência
mal amanhada e o distraído “ dá licença, meu furriel?” me comunica a ordem para
ir ao gabinete do Comandante.
Vou já, acompanho-te. Está mal disposto? Perguntei. Humm…acho que
não, responde o Orebe.
Vossa excelência, meu major, dá-me licença? Sim, entra.
Entrei no gabinete, na penumbra, com as janelas viradas para a
cidade, fechadas, para o Sol não entrar e conservar algum ar fresco que vinha
do interior do quartel. Seria bem pouco, o ar fresco, mas valia a pena.
Não me mandou sentar. Sem cerimónias comunicou-me: como o furriel
“Sousa”, da bateria cento e quarenta e sete, se encontra hospitalizado e a
bateria vai tomar parte numa operação, sendo tu o único furriel de artilharia
do Pelotão de Comando, vais juntar-te à bateria, no Grafanil e apresentas-te ao
nosso capitão Virtuoso.
E quando, meu comandante? Tens o jeep à tua espera para ires
levantar o equipamento e a casa, se quiseres ir buscar os teus objectos pessoais.
Não vale a pena levares muita coisa, pois é natural que não haja condições e
tempo para as usares. Roupa interior e pouco mais. O tempo que vais ficar é
determinado pelo tempo de hospitalização do furriel ou então pelo de duração da
operação.
Franqueza era o que não faltava e era assim que eu gostava e
gosto! Para quê rodeios, se o que estava em causa era a Pátria, una e
indivisível, do Minho a Timor! (este último aparte não fez parte da ordem do
comandante!)
Despedi-me como manda o Regulamento: “ Dá licença que me retire,
meu comandante?” Continência, meia volta e toca a andar.
O Pinhão estava a aguardar-me ao pé do jipe, saudou-me e quis
saber ordens!
Vamos à arrecadação levantar a mochila, capacete, a pistola-metralhadora UZI e
seis carregadores de munições; uns óculos de protecção que o Magalhães, para
evitar ser atingido pelas cobras cuspideiras (aparte meu), e que deram um
jeitão, evitando entrada de poeira ou ser vergastado nas picadas pelos ramos
que pendiam!
Também o desejo do Magalhães de que tudo corresse bem, gaguejado,
inevitavelmente, camarada em quase tudo desde que entrámos no Vera Cruz em
Lisboa; era o responsável pelos materiais de campanha!
Aviada a encomenda, o Pinhão, baixinho, alentejano, ciclista, rijo
como o aço, foi o único que fez a viagem de Lisboa a Luanda, sem vomitar, olhou
para mim e para a bagagem e comentou:
- Já foi fodido, furriel Monteiro? Desabafou!
Não, não há-de ser nada de complicado e daqui a dias estou de volta! Respondi
naturalmente, mas sem a mínima confiança!
- Oxalá, meu furriel, mas o que não faltam por aí são boatos! Acrescentou!
Vamos ver, não faço ideia do que possa ser, mas quando me
mobilizaram não prometeram nada, como a ti, verdade? Para irmos para a cerveja
no Cacuaco, não é de certeza!
Levou-me à Maianga, a casa da Dona Rosa, nossa hospedeira e
pensionista durante mais de um ano, o primeiro de Luanda onde juntei os
materiais de higiene, meias, cuecas, camisolas interiores e todas as camisas e
calças da farda e que não eram muitas: o blusão também, sempre protegeria da
humidade.
- Boa sorte, deseja-me o Pinhão, fez a saudação e partiu,
deixando-me no Grafanil, que ambos conhecíamos da capinagem em que
participámos, na semana seguinte da chegada a Luanda. Estava agora diferente; o
que era um imenso espaço plano, de capim em crescimento e construções de terra,
em forma de torres, algumas mais altas que um homem, resultado da arte das “térmites”
que por ali andavam há séculos, edificando uma cidade familiar com a terra que
iam roubando do subsolo e elevando camadas e mais camadas, construindo túneis
que só elas deviam conhecer. Entre a equipa de guerreiros do capim ficou
assente que nem uma só escultura seria derrubada ou sequer danificada!
Como antes disse, o Grafanil estava agora diferente: passou a uma
cidade dormitório, de casas todas iguais, em formatura bem alinhada, pré
fabricadas, chegadas em contentores de cartão, sem um único prego, só peças de
uma liga à base de alumínio e madeira prensada!
Nos espaços não ocupados, o capim semanas antes cortado, estava a
regressar, renovado, disposto a invadir tudo de novo.
Nas tendas colectivas e individuais, às dezenas, estavam já
hospedados os guerreiros da bateria de artilharia cento e quarenta e sete e
duas companhias de Infantaria, cujos números não fixei.
Fiz a obrigatória apresentação ao comandante e um sargento que ali
estava, certamente o director do hotel, apontou-me uma tenda coletiva, mas não
disse o número do quarto. Logo apareceram alguns, entre eles o Chucha e o Zé
Maria que me saudaram efusivamente e comentaram, sorrindo: “desta já o Sousa se
safou!”
Aos poucos fui tomando conhecimento do que se iria passar, sem
pormenores, naturalmente, estes só os “deuses” da guerra deviam saber, no céu
do Quartel-general; estudavam, deviam trocar impressões entre eles e iam dando
conhecimento aos comandantes das unidades, seguindo a linha hierárquica, sempre
com muitas cautelas e quase em segredo, ao que presumo, pois nunca soube e
ainda hoje não sei, como é feito o planeamento duma batalha e duma guerra muito
menos.
Como ia escrever antes e me distraí, o Chucha e o Zé Maria e
outros, fizeram o curso de Sargentos milicianos, o tal CSM, em mil novecentos e
sessenta, em Vendas Novas, na Escola Prática de Artilharia, Fixei melhor estes
dois camaradas por o Zé Maria ser um ás do empinanço, nunca tomou apontamentos
nas aulas, mas nos testes era sempre o mais bem classificado; o Chucha, que
jogava futebol, num jogo que disputámos em Vendas Novas marcou uma carrada de
golos na minha baliza!
III
Várias vezes por dia havia novidade, sempre oriundas do “jornal da
caserna” e quando faltavam íamos inventando, fazendo a preparação psicológica
para a guerra que ninguém queria travar, mesmo desconhecendo do que trataria.
Como as secções de artilharia estavam já formadas, ao intruso, que
era eu, foi-me entregue a função do “reconhecimento e defesa imediata” ! Só
podia ser por graça.
De tudo o que aprendi, nada tinha a ver com esta função; ou,
então, tudo tinha a ver e, na dúvida, fica assim, até fica muito bem.
A secção que iria comandar, faziam parte cinco soldados sem
especialização, um motorista, o Tiago, pequenino como o Pinhão, que veio a
revelar-se um tipo do caraças: calmo, bom condutor e excelente camarada; um
primeiro-cabo, apontador, que tinha a missão de ser o responsável pela
metralhadora fixa e uma GMC, ou seja uma camioneta da General Motor’s Company,
a que irei referir-me com frequência.
As funções eram, especificamente: fazer o reconhecimento do
terreno quando havia colunas militares em trânsito e acompanhar o responsável
pelos aprovisionamentos e ser a secção primeira a dar ou levar tiros.
Percebido? Eu não percebi, mas também não é importante, todos eramos virgens em
termos de guerra.
Uma vez formada a secção, reuni com todos, trocámos impressões e
decidimos como iríamos funcionar, em caso de algum encontro com os chamados
“terroristas” . A minha preocupação primeira era evitar algum acidente, como
sucedera já com outros, os seja, com a tensão do imprevisto, todos quererem
defender, acabavam por disparar uns contra os outros, com a precipitação e o
cagaço!
Uma das precauções a ter era a blindagem da GMC, que a oficina da
Companhia dos Caminhos de Ferro de Benguela veio a executar, com chapa anti-derrapante,
usada nas escadas e plataformas das carruagens; de ambos os lados da caixa foi
soldada uma placa dessa chapa que protegeria a secção, apenas o Tiago teria
como protecção a cabine e toso o motor da GMC, por ter que conduzir e para isso
precisava de visibilidade.
Os problemas, com que não contava surgiram no final da blindagem,
com o cabo apontador a exigir, como aprendeu, que fossem colocados sacos de
areia, para melhor garantir a protecção da secção!
Explicou-se, mais que uma vez que não havia espaço para empilhar, de cada lado,
uma pilha de secos de areia e entre a chapa e a cancela o espaço era de uns
cinco centímetros e nenhum saco conhecido, cheio de areia, caberia naquele
espaço! Nada o convencia a mudar a teimosia, até que um dos funcionários da
oficina da CCFB veio em meu auxílio e esclareceu que se forem colocados os
sacos a camioneta nem daqui sai, o motor não tem força para tamanha carga e
mesmo como está, sítios haverá que não os sobe!
O cabo da metralhadora deu-se por vencido, mas não convencido; os
sacos de areia é que seria material seguro! E, mesmo assim, ainda vinha outro
argumento: “ e se eles (referindo-se aos “turras” que nunca tinha visto, e se
viu não os conheceu, por não andarem com um cartaz a dizer que o eram “) usarem
balas perfurantes a chapa não adianta nada. E assim poderia ser, mas do que se
sabia à boca pequena era que ainda eram as catanas a arma dos “inimigos”.
Ensaiámos, na pequena mata a seguir ao Grafanil, simulações de
defesa imediata, com ataques simulados, mas sem tiros, para não espantar a
“caça”, quer do lado esquerdo, quer do lado direito, tudo para ficar claro que
os “guerreiros” sob o meu comando, não iriam matar-se uns aos outros, como
sucedera dias antes, dizia-se, a uma companhia que já tinha avançado para uma
das zonas de intervenção.
Atirar a “torto e a direito”, que acabava por ser mais a torto,
era o que queria garantir com os treinos.
De igual modo ficou assente: que eu transitaria, com os elementos
da secção, na caixa da GMC, num dos lugares mais próximos do cabo apontador,
para o caso de ele ser ferido, avançar eu para a metralhadora e foi designado
quem a mim substituiria nas mesmas circunstâncias!
Igualmente ficou claro que era eu quem se responsabilizava pelas
vinte e quatro granadas defensivas, sendo o soldado doze quem me substituiria,
por me parecer o que mais sabia de munições e seu manuseamento; acordámos que
só doze granadas seriam por mim espoletadas e as restantes só se fosse
necessário armá-las de espoleta, pois que sem elas, o perigo de acidente era
muito menor! Se alguma situação obrigasse a usar as granadas, a secção seria
alertada pelo som de um apito, como o dos árbitros de futebol, e toda a secção
se deitaria no estrado da caixa ou no chão fora da camioneta, se essa fosse a
mais conveniente e só sairiam daquela posição quando eu desse sinal, apitando
duas vezes seguidas; se fosse atingido seria o doze quem me substituía, assim
como seria ele a certificar-se, quando as granadas deixassem de se ouvir, ou
por estar ferido ou até por me ter esquecido de dar o sinal para retomar
lugares.
- Então e o Tiago? Alguém perguntou.
Bem, como o Tiago é baixinho, terá que se encolher dentro da
cabine, no restante é tudo igual.
O furriel transitará sempre junto da secção, na caixa da GMC,
exceto quando tivermos que pernoitar em local com alguma garantia de segurança,
então fará companhia ao Tiago, ficando ambos na cabine!
No dia trinta e um de Agosto, após o almoço, foi-nos comunicado,
em reunião de comando, que no dia seguinte, salvo qualquer imprevisto,
seguiríamos para novo posto, mais avançado, a cerca de cinquenta quilómetros
mais a norte.
Os sete furriéis milicianos, mal acabou a reunião, combinaram ír
fazer a nossa comemoração, que podia não mais se repetir, nas cervejarias da
Ilha do Cabo.
Nunca fui capaz de me embebedar, quando souber antes que essa é a
finalidade; ou seja, sempre foram as bebedeiras a apanhar-me, as poucas vezes
que tal sucedeu e nunca perdi a noção do meio e do tempo: mais uma vez ficou
provado: ou devido à tensão geral ou por fazer parte do registo psicológico, à
terceira imperial estava já a vomitar tudo o que comera e bebera.
Os camarões estavam excelentes, assim como as bifanas, mas a
imperial recusou-se a ficar naquela mistura do estômago e nem optou pela saída
da urina, tinha que sair por onde entrou; uma vergonha! Comentavam eles.
Os camaradas continuaram a emborcar cerveja, deixando a imperial e
passando para a caneca, até perto das três da madrugada, quando acordámos
voltar ao quartel, não antes de o Franco dizer umas quantas ameaças
alcoolizadas: “ ir já para o quartel para ir para a guerra?! Puta que os
pariu…que vão eles! …eu até nem gosto de guerras! Mas vão vocês, boa viagem,
digam lá na guerra que o Franco não está em condições de matar nem uma mosca!
Táxis, àquela hora, eram raros e os que apareciam, ao ver o estado
do grupo tão “divertido”, fingiam que não viam o sinal para parar e até um
deles fez um “pirete” e acelerou!
Não havia insultos, só uns palavrões, de origem alcoólico-humorística;
no meio da estrada, um deles gritava, em direcção a um táxi que passou e não
parou, mas a milhas de distância:” vá-se foder, podemos bem ir a pé; o Grafanil
é já ali e a guerra, se tem pressa que vá andando e se não tem, que
espere, se chegarmos atrasados!” Pecebeu?
Para chegarmos mais depressa podemos, sugeriu o Franco para o Zé
Maria, saltar ao eixo até ao Grafanil! Obteve de imediato o acordo dos
restantes, vaporizados como ele, rindo, saltando, insultando-se mutuamente; até
que um dos que estava a amochar, dobrado pela cintura e o álcool a provocar ondas
gigantescas, se agachou ou desequilibrou para a frente, nunca chegámos a saber,
quando o Zé Maria ia a saltar; como não encontrou o apoio, seguiu em frente e
estatelou-se no alcatrão, vomitando uma grande quantidade de entulho e entrou
em desmaio.
Atravessei-me, de braços levantados, à frente do primeiro
automóvel que apareceu, resumi o que estava a passar e pedi para nos levar ao
Hospital Militar; os restantes, soube, horas mais tarde, meteram-se noutro
carro que os levou ao Grafanil.
Perto das seis da manhã estava já à porta do hospital um jeep para
nos levar para o “Grafa” e ouvirmos o “sermão” do Virtuoso capitão.
Eu, por que não estava embriagado, tinha de ser o principal
responsável, dizia o irritado comandante e ameaçava dizendo que só não faria uma
participação, com vista a uma futura sansão, por estar ali como adido, mas que
o nosso Comandante, o major iria tomar conhecimento do ocorrido!
Se isso sucedeu nunca cheguei a saber; talvez os dias e noites que
se seguiram devem ter feito esquecer aquela noite e madrugada.
IV
Cerca das dez horas a coluna estava preparada para partir. O céu
de Luanda estava baço, mais do que era habitual.
Como já há tempos não havia escaramuças, entre Luanda e Caxito –
era para aqui que nós íamos – a coluna organizou-se deforma normal. Jipe para o
capitão Virtuoso, outro para o tenente e o alferes capelão. Os restantes
alferes, todos milicianos e conhecidos de Vendas Novas, onde fizeram o Curso de
oficiais milicianos, seguiam em dois jipões, um deles para as transmissões e as
GMC’s a seguir, cada uma com uma secção de pessoal, um furriel e, atrelado um
obus de 7.5 centímetros.
No penúltimo lugar seguia a GMC com a secção de manutenção e a
cozinha de campanha já em laboração e por último a minha secção, com um alferes
de IOL e seu equipamento de rádio, sendo ele o chefe da viatura ( é sempre o
mais graduado o chefe de viatura ).
Zona calma, que conhecia só até ao Cacuaco!
Sem problemas dignos de nota, a não ser um ou outro ajustamento,
fizemo-nos ao caminho: até ao Cacuaco, localidade com meia dúzia de casas e
algumas grandes cervejarias, a três ou quatro quilómetros de Luanda; era na foz
do Rio Bengo, local já por mim conhecido por ali ter ido jantar algumas vezes.
De Luanda até ao Cacuaco o pavimento era alcatroado, mas logo a
seguir entrámos na terra batida, para um pouco mais adiante, na zona do
pântano, onde estavam inactivas e com aspecto de abandonadas, rudimentares
maquinarias de perfuração para a prospecção de petróleo, ou gás, propriedade da
Petrangol. Mal terminava aquele pedaço de pântano, voltámos ao macadame ou
terra batida, reaparecendo cerca de cinquenta quilómetros adiante, cerca
quinhentos metros antes da fazenda Tentativa e Caxito.
Do Cacuaco ao Caxito era a savana com suas características
naturais, muito seca, com as espinheiras e alguns embondeiros; de vez em quando
surgiam pequenos rectângulos brancos que concluímos ser algodão não apanhado.
Não se via vivalma e, que me recorde, não cruzámos com qualquer
viatura. Um sossego completo, só o barulho dos motores a que se sobrepunha o do
atrelado dos obuses, sem rodados de pneu, a tropeçar em tudo o que era buraco
na terra batida.
De tempos a tempos chegava, pelos intercomunicadores, uma voz que
se não parecia com nada, mas que era a voz de campanha do capitão
Virtuoso.
Chegámos perto da hora do almoço. Entrámos na propriedade que era
a Tentativa, da Companhia do Açúcar de Angola. Um oásis!
Hectares vários de um colmo que não tinha visto antes e que deduzi
tratar-se da cana do açúcar, grandes extensões de palmeiras e enormes cachos de
frutos, com aspecto de maduros, folhas enormes, que se encostavam às da
palmeira do lado, que uma grande família, de pequenos saguins, aproveitava para
se exibir num palco interminável de baloiços, tomando atitudes que pareciam de
provocação à plateia extasiada com a destreza dos símios atores, mais adiante,
talvez espantados com o caqui dos fardados guerreiros, que não conheciam.
Mais adiante uma legião de troncos nus, acinzentados, de catanas
em punho, limpavam as canas dos restos das folhas que o fogo não tinha queimado
e quando a limpeza terminava, de um só golpe de catana, a cana ficava dividida
em dois pedaços com cerca de um metro cada pedaço; outro grupo, mais pequeno, carregava
os pedaços nuns vagões que uma pequena locomotiva rebocava e levava para um
edifício tipo armazém, onde funcionava a refinaria, que não fomos autorizados a
visitar. Uma vala servia de caminho para regar o oásis e lavar as canas antes
de serem trituradas.
Havia hortas com os legumes habituais e um pedaço destinado á
cultura do abacaxi e as bananeiras apareciam um pouco por todo o lado. Era uma
propriedade rica.
O cinzento que cobria a pele dos negros, parecida com a do
primeiro que vi, eu ainda no Vera Cruz e ele sentado numa pilha de sacos de
farinha de peixe, era provocado pela cinza dos restos das canas, queimadas
antes do corte. Trabalhavam, silenciosos, de vez em quando olhavam para o novo
aparato junto do refeitório e camaratas da Fazenda.
O almoço para oficiais e sargentos foi preparado e servido pelos
serviços da Fazenda, com uma grande cozinha, dois refeitórios, hospital e
casa mortuária.
Nos restantes dias que ali estivemos “hospedados”, em escala
técnica para novo “voo” para algures, as refeições foram sempre servidas pelos
serviços da empresa, criando um traço de separação, entre o comando e os
soldados, que eram servidos pelos tradicionais meios da unidade, em campanha. O
responsável pela manutenção era o furriel Raposo, especializado para esse fim.
Ainda no dia da chegada à tentativa organizei novo treino de
defesa, tendo como alvo a defender a refinaria e no dia seguinte de manhã,
fizemos o reconhecimento da periferia, indo mesmo até ao Caxito e à barragem
das Mabubas, uns quilómetros, poucos, no rio Dande, distante da Vila do Caxito.
Junto à barragem funcionavam já os serviços de manutenção
alimentar, e tinha aquarteladas duas secções de polícia militar, com duas auto
metralhadoras da marca panhard, pertencentes a um esquadrão de cavalaria, que
teriam como missão principal a defesa da barragem e da manutenção militar.
De tarde o treino envolveu o pessoal da assistência em campanha,
enfermeiro e maqueiros, na zona do palmal e bananal.
Servi de cobaia. Do simulado acidente teria resultado um ferido e
a suspeita de ter o braço esquerdo fracturado, foi imobilizado, não sei se bem
se mal, as cobaias não têm opinião e muito menos técnica. Rumámos ao
aquartelamento para ser examinado no hospital.
No caminho passámos, como no dia anterior e por várias vezes, pela
zona do corte das canas, onde umas dezenas de homens executavam a já citada
tarefa, de limpar das canas do açúcar, as folhas que ainda restavam, mesmo
queimadas, depois as carregavam para os vagões que a pequena locomotiva
rebocaria até à fábrica.
Vimos que suspenderam o trabalho e olharam para os jipes,
gesticulando interrogativamente. Nada se percebeu, mas mal tínhamos chegado ao
acampamento, mas já com as ligaduras removidas da fractura do meu braço,
começaram a aparecer grupos de negros cobertos de cinza, apenas de calção
vestido, parando a uns cinquenta metros do recinto das tendas.
Não percebemos o que se passava, mas reparámos que o grupo mais
próximo não era numeroso e nem mostrava qualquer agressividade. Alguns rostos
eram conhecidos, por serem os que mais efusivamente nos saudavam quando
passávamos e correspondiam ao nosso cumprimento.
Fomos ao seu encontro, eu e o cabo maqueiro e do grupo dois se
adiantaram na nossa direção, falando um português muito atropelado e com um
sotaque que devia ser daquela região e eu era o alvo dos seus olhares,
perguntavam o que me tinha sucedido, apontando para o braço, já sem os adereços
da farsa.
Explicada a situação, exultaram, quando um dos conferencistas lhes
transmitiu que nada tinha sucedido ao menino do lenço preto. Era comigo.
Levantei os dois braços para lhes mostrar que nada de ferido tinha.
Atrás de nós, uma voz bem conhecida, murmurou suficientemente alto
que deu para ouvir: “ o furriel Monteiro tem já uma boa quantidade de
admiradores por estes lados!”
O lenço preto que usava, dobrado em triangulo e atadas as duas
pontas, ficava pendurado no pescoço ou o colocava de forma a cobrir o nariz e a
boca, quando em trânsito na terra batida, foi comprado, à saída de Luanda, numa
banca de rua, no dia anterior à nossa partida para a Tentativa.
Bem jeito me deu e todos os elementos da secção de reconhecimento,
vendo a sua utilidade, o compraram na primeira ida a Luanda, devia poder tapar
os ouvidos, por ter que fazer uma lavagem mal regressei a Luanda, para remover
a terra vermelha que formou um rolhão com a mistura da humidade do ouvido e da
que entrava da densa camada de humidade daquela zona que estava a perturbar a
audição.
As tendas de campanha foram armadas perto das instalações da CAA,
Companhia do Açúcar de Angola, as camaratas, os refeitórios e a área
administrativa. O hospital da Fazenda ficava isolado, mas perto dos serviços.
O largo das tendas, além dos pequenos arbustos, era ocupado por
umas árvores, três, da família das espinhosas, de folhas minúsculas, não dando
sequer sombra nem preenchem o espaço entre ramos.
É certo que no final da época do cacimbo não há grande ostentação
vegetal na savana, a não em zonas de maior humidade, onde a mata densa, sempre
em festa verde exibindo em todo o esplendor e o ano todo.
No final da segunda tarde na Tentativa, os pensamentos bem longe
desta e até de Angola, foram interrompidos pela correria, entre os espinhos da
árvore, de um pequeno esquilo, de cor acinzentada, pelagem curta e uma felpuda
cauda, qual bandeira que o seguia em cada movimento. Invejei a destreza daquele
pequeno acrobata; tão depressa estava no mais alto ramo de árvore, como
invertia a marcha e de cabeça para baixo parecia que iria precipitar-se na
terra que nós pisávamos, parava, apoiado nas patas traseiras, olhava-nos e
partia até ao alto, voltando a parar e com as duas mãos juntas levava até à
boca algo que devia ter apanhado e que nunca percebi o que seria. Ficavam só os
movimentos da boca na operação de mastigar.
Durante aquele bem executado número de circo, cuja pista era toda
a copa da grande árvore sem folhas, vimos entrar em cena um novo elemento, em
tudo diferente do que o esquilo: cada movimento era mais que pensado, tal a
lentidão com que se movimentava, parecendo uma cena em câmara lenta, monótona.
Devia andar por ali há algum tempo, mas o seu disfarce e a ausência de ruído,
não o tinha visto antes: um camaleão! Aquela forma de se movimentar devia ter
sido treinada por todos os seus antepassados, cada mudança de pata era muito
bem calculado e só movia o membro traseiro, depois de bem seguro no ramo com os
seus dedos longos e terminados em garra. Enquanto o esquilo se servia da cauda
como uma bandeira, a do camaleão era usada para se equilibrar, enrolando no
ramo em que se apoiava.
Se ambos tinham o destino marcado para naquele dia se encontrarem
no mesmo palco e espectáculo, penso que um deles terá sido traído ou atraído.
Avistaram-se, esquilo e camaleão, não sei qual deles viu primeiro
o outro, olharam-se mais intensamente ou assim pareceu: o camaleão com seu
capacete de guerras antigas e olhos a ver em direcções diferentes, um para a
frente e outro para trás e o esquilo, com sua bandeira bem levantada, parou;
olharam-se com atenção, tudo levando a crer que se conheciam e não foram ali
dar um espectáculo para levantar o moral dos fardados ainda sem guerra. O camaleão
deu dois lentos passos de aproximação ao esquilo e, sem aviso, disparou o seu
dardo viscoso, saído da sua boca, a uma velocidade que nada fazia prever, que
acertou em cheio na boca do esquilo, que não recuou e preferiu segurar o dardo
do guerreiro, que se desequilibrou, pendurado pela língua presa na boca
do esquilo, acabando por cair junto a nós, resto da língua fora da boca que não
mais fechou, ali exalou o último suspiro, perante uma plateia de fardados a
aprender, como se pode morrer.
A espera das ordens dos altos comandos, estava a criar um ambiente
cada vez mais tenso. Sabíamos que iríamos avançar mais para o interior;
enquanto os sábios, lá nos gabinetes, planeavam, no palmeiral da Tentativa
planeava-se mais uma transgressão.
Quando tudo parecia estar em sossego, um jipe se esgueira em direcção
à estrada, de motor e faróis desligados, empurrado!
A paragem era no Cacuaco, onde cinco furriéis e o motorista, foram
afogar a sua sede de quase tudo. Soube-se que um dos prevaricadores tinha
encomendado um ensopado de borrego para seis e daí a fuga noturna.
No dia seguinte, o terceiro, incluiria as habituais palestras e a
gravação das mensagens de Natal para as famílias.
O Chucha tinha comprado, em Luanda, uma motorizada em não sei
quantas mãos, conseguiu enfiá-la numa das camionetas até à tentativa. Disse-me
que todos os dias de manhã se deslocava nela até ao Caxito, onde ia tomar o
pequeno-almoço, que vim a saber, na manhã das mensagens, tratar-se de beber
muita cerveja e comer quase nada. Acompanhei-o no dia seguinte e confirmei o
que ele dizia, mas não me dei bem com a receita e não repeti.
A gravação das mensagens para a família, por serem as primeiras,
pensava eu, eram, no mínimo um ato perverso. Ninguém estava preparado para o
executar; nem o gravador das mensagens, nem os emissores das mesmas! Alguém, no
Quartel General, se lembrou desta cena e nem terá pensado muito nela, nem
consultado alguém antes de a sugerir ( ou impor ? ) aos comandantes das
unidades.
A seguir ao almoço, organizou-se uma fila de militares, penso que
pela ordem dos respectivos números, num espaço junto ao hospital. A uns três ou
quatro metros, à frente do primeiro da fila, estava um civil, de microfone em
punho que ía colocando à altura da boca do militar.
A fórmula era a mesma para todos. “ Sou fulano, seguia-se o posto,
o número e a unidade e o texto: desejo aos meus pais e restante família e
amigos, namorada ou esposa e filhos (quando era o caso), um Natal Feliz e um
Ano Nove cheio de prosperidades”
Todos teriam tido tempo para o memorizar, a verdade é que, quando
chegava a deixa, na maioria dos casos, tudo saía aos solavancos, alterado,
adulterado e nalguns casos não saía nada, nem com a ajuda do “ponto”, a
sugerir, de lado, o que devia dizer a seguir, mas mesmo assim não saía.
O que saiu, nalguns casos, foi um ataque de nervos que promoveu
lágrimas e soluços, sufocados ou não, eram as mensagens não gravadas na fila da
ratoeira.
Anos mais tarde, depois de ter regressado, ouvi algumas dessas
mensagens e fiquei convencido de que a peça não foi melhorada, algumas chegavam
já no Janeiro avançado, e as prosperidades continuavam a não sair. O que terá
melhorado, segundo me disseram, foi o som, nas primeiras mal se percebia o que
diziam, o que ainda comovia mais os familiares, tendo um efeito contrário ao
pretendido: acalmar as famílias.
Nessa mesma tarde, logo a seguir à gravação, com alguns militares
a recusá-la, o palmeiral for sobrevoado por um helicóptero, trazendo de lado
uma maca. Poisou num largo frente ao hospital, que servia de heliporto.
Quando muitos dos que ali estavam esboçaram o gesto de ir ver o
que se passava, foram de imediato proibidos de se aproximarem e mesmo do
hospital não era autorizado, melhor, passou a ser proibido.
Era óbvio que o que pretendiam era evitar que tomássemos
conhecimento e isso viesse a baixar o moral dos que esperavam para avançar para
a zona desconhecida, talvez por isso, temida.
……………./////……………/////…………./////…………../////…………
Todos os dias era nomeada a guarda ao acampamento e nesse dia,
para além das normas do ritual, havia a recomendação expressa de que ninguém se
aproximasse do hospital.
Pouco mais de uma hora teria passado sobre o render da guarda e as
cautelas a ter, novamente o gafanhoto gigante sobrevoava e poisava no mesmo
local do anterior, junto ao hospital.
Alvoroço, mas as ordens eram para ser cumpridas.
Também, logo a seguir às mensagens de Natal, partiram para Luanda
um segundo sargento e uma secção que ele chefiava, para tratarem de algo ligado
a futuros abastecimentos. Levaram um jipe e um jipão e respectivos
motoristas. No regresso, já noite cerrada, ou por que o motorista não seria um
perito, ou talvez com saudades de conduzir, em vez de continuar como chefe de
viatura, o sargento decidiu ocupar o lugar do motorista e assim teriam feito a
maior parte da viagem de regresso à Tentativa.
A meio de uma descida, já com a fazenda à vista, numa curva para a
esquerda, sem o devido desenho de inclinação, o atrelado do jipão varejou para
fora da estrada e o sargento atrapalhou-se com o que não estava habituado, para
tentar manter na via, guinou para a esquerda, mas acabou por capotar pela
pequena ravina do lado direito, sendo esmagado um dos soldados e um outro com ferimentos
ligeiros.
Cerca de vinte anos passados sobre o meu regresso de Angola, numa
arrumação sintética deste período, escrevi:
…
…outro!...
(Avança outra farda indecisa a olhar os pensamentos)
Fala o soldado tal da bateria tal…
… …olha em volta… …
(falta qualquer coisa, pensou)
- Olha o número!
Numero tal
Para sua querida Mãe Noiva Irmã e
Restante família e amigos
Desejando a todos um ano…? … um Natal cheio
… ? …um ano feliz … ? …um Natal…
Até ao meu regresso,
… Indeciso … com dúvidas.
Lamentavelmente, não regressou.
Virou-se o atrelado e o jipão na curva da estrada
Entre a gravação e o Natal
Entre Luanda e a Tentativa.
IV
À secção de Defesa imediata foi acrescentado um alferes, indo
montar guarda aos despojos do acidente, em tudo parecendo um velório, mas sem
corpo para velar.
Pela manhã fomos substituídos pela equipa de mecânicos que foi
fazer a remoção do que restava.
Ao chegarmos à Tentativa era grande o alvoroço reinante e três dos
furriéis, tal como tínhamos combinado, esgueirámo-nos para junto do hospital e
fomos espreitar a casa mortuária: deitados sobre a laje, perto um do outro,
estavam dois corpos, cada um deles com uma cartolina sobre o peito, do tamanho
de um postal, onde estava escrita à mão, a sua identificação.
As vísceras estavam a iniciar o implacável processo de
decomposição, havendo já um aumento do volume dos corpos, sobretudo na cabeça e
pescoço,
Um deles tinha levado um tiro entre as sobrancelhas e através do
pequeno orifício escorria um liquido incolor, deslizando pelo pescoço e se
depositando na laje; o segundo mostrava um golpe, que devia ter sido feito por
uma catana, que ia desde o pavilhão auricular esquerdo até à base do pescoço,
parecendo uma enorme boca, aberta de espanto.
Ainda de manhã, numa sala do hospital, houve uma breve reunião de
oficiais e sargentos, onde o capitão Virtuoso fez o ponto da situação:
- Vamos tomar parte, com outras unidades militares, na Operação
Esmeralda, apenas aguardamos a indicação do dia e hora, que não deve tardar.
Estive, com o nosso coronel, a fazer o reconhecimento do local
onde iremos ficar aquartelados; não houve qualquer problema, mas dias antes,
noutra visita, a Panhard foi atingida a tiro de metralhadora. Nada mais tenho a
acrescentar. E só aguardar ordens.
De tarde, logo a seguir ao almoço, estoirou a confusão! O cabo de
transmissões de serviço, recebeu do Quartel-general a mensagem que o capitão
Virtuoso esperava.
A falta de prática destas coisas da guerra e seus segredos, bem
como uma deficiente formação, terão estado na base desta falha do telegrafista;
ou terá sido a confusão do dia anterior: mensagens, helis com macas de lado,
acidente com morte de camarada, o que esteve na origem da quebra da cadeia
hierárquica das comunicações.
Pedindo segredo, deu conta ao seu camarada de transmissões, da
mensagem recebida do quartel-general, para o avanço da bateria.
Só que os segredos, talvez por se sentirem tão comprimidos na
falta de liberdade, são por vezes assim guardados; chegou mais cedo a uma boa
parte do pessoal do que ao capitão Virtuoso!
De imediato o cabo foi detido e guardado por dois soldados,
enquanto o capitão dava andamento à mensagem, já com o sargento no Posto.
Mais rápido do que a mensagem circulou, circulou a noticia de que
o telegrafista estava detido! Sem se conhecer a origem, começou outra mensagem
a circular, esta sem ter de respeitar hierarquias: ou o cabo é libertado e nos
acompanha para a operação ou ninguém vai sair dali!
Até ao longe cheirava a sublevação. E dessa forma foi avaliada
pelo Virtuoso capitão, que convocou uma urgente reunião de todos os oficiais,
incluindo o alferes capelão, Amador. (Amador era o nome do capelão)! A decisão
saída foi: a libertação imediata do cabo detido e a suspensão do processo
disciplinar, até novas ordens.
No dia seguinte, à hora prevista, partimos da Tentativa para o
Caxito, ali mesmo ao lado, onde aguardámos a chegada de outra companhia e duas
secções de artilharia de campanha de oitenta e oito milímetros, vindas da
bateria cento e quarenta e cinco e iria apoiar as seis da bateria cento e
quarenta e sete.
Para acompanhar a coluna vieram das Mabubas, onde estavam
aquartelados, duas secções de cavalaria, com as respectivas auto metralhadoras
Panhard.
Logo à saída do Caxito virámos à direita, deixando para trás o
alcatrão e entrando na terra batida e que se manteve por cerca de cem quilómetros,
de embondeiros e planura, de capim ressequido e carraceiras a voar lá no alto
ou poisadas em árvores de pequeno porte, espreitando algo para comer, pois não
seria para saudar a guerra e desejar boa sorte! Era a savana em toda a sua
calma e solidão.
O alcatrão reapareceu cerca de quinhentos metros antes de uma
povoação chamada Úcua.
Úcua seria como uma quinta dos arredores de uma cidade europeia;
produzia o sisal, propriedade que devia ser rentável, pois tinha um aeródromo e
respectivos apoios, nomeadamente uma casa que seria de habitação e um hangar
para um só mono motor!
A povoação começava logo a seguir, vendo-se, do lado esquerdo, um
pequeno edifício, com marcas de ter sido alvo para armas de guerra e que diziam
ter sido um café, do nosso lado esquerdo e do direito, quase em frente do que
foi um café, havia uma padaria, pequena, com um pequeno telhado por cima da
porta e quase a seguir, numa curva para a esquerda, a descer … o horror!
Mal chegamos ao ponto, onde a leve subida dá lugar à descida, começámos
a ver, primeiro do lado direito e depois do lado esquerdo, uma macabra
exposição de cabeças de carapinha, empoeiradas, espetadas na ponta de paus,
algumas já no chão e as que ainda estavam no expositor, escorria delas um
liquido incolor e o ar, sem vento, fedia a podre que parecia entrar pelo nariz
e ficava a empestar todo o interior e exterior do corpo.
Muitos dos paus estavam já desabitados, mas as marcas da
escorrência ainda estavam na base e na casca do suporte, agora abandonado; o
que antes fora cérebro estava a transformar-se num licor, que deve ter
embriagado os autores da façanha!
Alguns metros mais acima havia um edifício que, tudo levava a
pensar que seria uma serração.
Alguém disparou um tiro de mauzer, que me pareceu ter sido da
minha secção, mas não tinha sido, segundo me garantiram; talvez por este motivo
foi recebida a ordem de aumentar a velocidade da coluna.
Alguns quilómetros mais adiante, já na zona de floresta, numa
curva para a esquerda e a subir, viu-se, do lado direito e a uns cem metros, no
ponto mais elevado da encosta, um conjunto rochoso que contrastava com a
planura da savana, do Caxito ao Úcua Parecia ter sido boleado e polido,
certamente pelos muitos milhares de anos que ali estava, exposta aos elementos
naturais: era a Pedra Boa, segundo alguém a designou.
Constou que os da frente da coluna, que era a Panhard e os que a
seguiam mais de perto, tinham visto negros a espreitar, mas não garanto tal; o
local era excelente, quer como ponto de observação, quer para emboscar uma
coluna, sem correrem grandes riscos no inicio. Nada sucedeu.
Uns poucos de quilómetros mais adiante, já a noite a aproximar-se
com a rapidez habitual naquela latitude, a coluna parou, o capitão virtuoso
deixa o seu jipe e deu-me a ordem de que a minha secção avançaria para a cabeça
da coluna, ali nos separando dos que nos precediam, que continuavam mais para
Norte!
Assim sucedeu, os da frente já se não viam e eu mantive a
distância de segurança do primeiro carro da nossa artilharia.
Cerca de mil metros após a separação, veio a ordem, via rádio, de
que viraria á esquerda pela picada! Noite cerrada, faróis ligados, marcha muito
lenta e um muito agradável aroma no ar, parecendo o da flor da laranjeira, mas
muito mais agradável.
Do lado direito surgiam, sem que os víssemos, uns braços de árvore
ou arbusto que nos vergastava impiedosamente no rosto, obrigando-nos a
defender-nos como podíamos, de um adversário que não víamos, apenas sentíamos e
alguns sangravam mesmo.
Aproveitando a luz dos faróis das viaturas que vinham atrás,
conseguimos identificar os agressores, através das bagas vermelhas que acabavam
por cair, algumas, dentro da caixa da GMC. Eram frutos de cafeeiro, maduros,
que não devem ter sido apanhados devido á guerra que por aqueles lados terá
havido.
Decorridos alguns minutos a uma velocidade perto do zero, e a
visibilidade quase nula, devido à escuridão e densa neblina, a GMC parou a
escassos metros de uns faróis, parados do lado esquerdo da picada, onde da
caixa vimos um negro, jovem, com uma fita atada na cabeça de forma bem visível,
tendo a seu lado dos militares de camuflado, armados com uma espingarda que
ainda não tinha visto e que depois soube que era a espingarda automática, G3.
Algo estaria acordado antes; quase de imediato apareceu o capitão Virtuoso,
que dialogou com os dois militares, ocupou lugar no jeep deles, dando indicação
à coluna para seguir o jipe, que passava a ser o do comando.
Não cheguei a saber qual a patente dos camuflados, já que todos,
os graduados viajavam sem distintivo à vista.
A interrogação que ficou por responder foi a de se o portador da
fita amarela era um guia forçado ou era mesmo um traidor, naquela guerra de
interesses, mas dita territorial.
Se não era fácil concluir então, agora nem sequer é interessante.
O tempo, como sempre acontece, soluciona equações que frequentemente foram
tidas por insolúveis. E o que então era tido como solução única, anos mais
tarde, veio a demonstrar-se que a tal solução única era exactamente a que nunca
devia ter sido aplicada ! Mas essa é outra música.
Voltando à viagem.
Dez minutos passados sobre o encontro nocturno entre caqui e
camuflados, estávamos a subir um caminho de piso formado por terra quase solta
e pedras arredondadas, sedimentares, filhas abandonadas por um mar que, há
séculos ou milénios, virou costas e foi conhecer outros lugares; parámos num
largo de terra batida, em forma de meia lua, cortada naquele lado da
colina, virada a nascente, com algumas centenas de quilos de café, depositado a
um dos lados e que antes devia estar a secar naquele eirado, trabalho que
deve ter sido executado pela Companhia de Caçadores que ocuparam o espaço dias
antes e que foram saindo à medida que nós íamos entrando.
Durante a noite ouviram-se tiros isolados e umas rajadas que
seriam de metralhadora ligeira ou da espingarda G 3, cujo som não identificava,
por o não conhecer, o que mais se ouviu foi o barulho de uma moto serra.
Quando o dia despontou, bem cedo como era habitual, estavam já
instalados os seis obuses do capitão Virtuoso e os dois que o capitão Pereira
da silva, comandante da bateria cento e quarenta e cinco, se não estou
baralhado, pois podiam ser da cento e quarenta e seis, cujo nome do comandante
não recordo. Há pormenores, a que atribuo pouca ou nenhuma relevância que
naturalmente esqueço; o certo, certo, é que de manhã lá estavam a fazer
companhia às que nós levámos e que iriam ficar até que alguém as viesse
resgatar.
As tendas foram montadas, o apoio logístico instalado e as
viaturas no espaço sobrante e não era muito, algumas ficaram fora da eira de
secagem de café.
Alguns pormenores iriam ser ajustados durante o dia e nos
seguintes.
V
O clarear do dia foi-nos mostrando o deslumbramento do espaço
envolvente. Um mar verde cercava toda a colina, desde a base até pontos bem
distantes, como era o caso do monte do lado direito e o que ficava em frente e
era rochoso, com a configuração de um punho fechado na extremidade de um braço
que começava junto à Quibaba, num suave declive, até à ponta do rochedo; no
ponto mais alto flutuava uma bandeira, que os binóculos da Quibaba
afirmavam ser de cor vermelha.
A Fazenda tinha o seu edifício residencial no ponto mais elevado
da colina, estando chamuscado em vários pontos, sinal evidente de que tinha
sido pasto das chamas; devia ter havido confusão por aqueles lados e não foi há
muito tempo.
No alto de uma árvore seca, que deve ter sido para ali levado, foi
montado uma espécie de pequena varanda de onde se podia ver toda a colina e
para lá dela, alguns pontos dos terrenos da Fazenda! Qual a utilização que lhe
foi dada não quis sequer saber, mas nada teria a ver com algum receio de
ataque; da eira, ocupada pelos obuses, tendas e jipes ia-se para o espaço em
volta da casa, ou dando a volta pelo ponto por onde chegámos ou, pelo corte
feito na colina, como se fosse um queijo flamengo, a quem cortam um quarto, por
umas estacas cravadas naquela parede de terra e pedras, não muito usada pelo
pessoal de campanha, mas com o movimento do pessoal da cozinha e por todos
quando havia refeição cozinhada.
Bem cedo ainda, mal o sol rompia, fomos dar protecção ao furriel
Raposo, responsável pela alimentação, da Quibaba ao Caxito e de seguida às
Mabubas, levantar a maior parte dos alimentos, que devia estar mais ou menos
assente quais as quantidades que cabiam a cada unidade destacada para aquela
zona. As rações de combate eram só para emergência por faltar na Manutenção ou
para o pessoal destacada para acções de pouca duração, que quase só a minha
secção utilizava.
Antes de sairmos da Quibaba o comandante deu-nos indicações para
outra saída, mais a sul, onde a coluna se separou na véspera ao inicio da
noite! Dizia ele que era fácil sair por aquele lado, porque o caminho estava
bem marcado por ser o que estava já bem marcado pelo uso dado ultimamente!
A utilização da entrada Norte teve a ver com a saída da companhia
de Caçadores para uma outra frente na mesma picada não dava para cruzar as
viaturas.
Mal saímos da picada da Quibaba e entrámos no alcatrão, reparámos
numa outra picada que parecia seguir para o interior da mata e para os lados da
Pedra verde, era este o nome do rochedo que, visto dali se não parecia com o
punho fechado que a Quibaba nos mostrava.
O chão da agora citada picada estava remexido, ficando nós convencidos
de que aquele tinha sido o caminho usado pelos Caçadores, a quem nós ocupámos o
espaço na Quibaba.
Não imaginava que, dois dias depois, iria a minha secção, mais as
seis camionetas da bateria, transportar uma companhia de Infantaria que iria
substituir os caçadores que tinham ocupado a Quibaba até nós, os artilheiros,
chegarmos! Lá iremos.
À passagem do Úcua voltámos a cruzar com o horroroso espectáculo
das cabeças espetadas nos paus. Eram agora menos e mais os paus vagos; algumas
estavam caídas junto ao suporte. Calculei, face ao lugar que ocupava na coluna,
no dia anterior, que alguns elementos de trás tivessem perturbado aquela
quietude de sentinelas sem vida. E penso isso por que, não devia ali passar
mais ninguém e por o soldado doze, da secção, apontou a arma mas não se atreveu
a disparar, avisado que tínha sido de que só haveria tiros quando não pudessem
ser evitados.
A chegada ao Caxito e o tempo de espera pelo final das compras do
furriel Raposo para acertarmos alguns pontos da ida às Mabubas, foi passado a
ver melhor a povoação e almoçar no restaurante da Tentativa.
Vi, nesse dia, o rosto mais delicadamente perfeito, esculpido na
madeira comum à da maioria dos angolanos.
Depois do almoço fomos a Luanda, inesperadamente, para que o
Raposo comprasse qualquer produto que nas Mabubas não havia, aproveitando eu
para ir à Maianga e trazer mais algumas peças de roupa interior e já no
regresso passámos na Companhia dos Tabacos, onde nos ofereceram dois capacetes
de cigarros a granel.
Regressámos ao Caxito, de seguida às Mabubas para levantar o que o
raposo tinha encomendado para a refeição do dia seguinte.
O regresso à Quibaba iniciou-se já com o Sol a desaparecer.
Iniciámos a subida pelo novo caminho de Sul e, inesperadamente,
surgem dois soldados armados que nos interceptam com a bem aprendida intimação.
“Quem vem lá faça alto!” Fiquei espantado e em vez de me identificar, sempre
pensando que era uma brincadeira, retorqui “ mas que merda é esta?!” e
continuámos a subir.
A sentinela mais próximo, reconhecendo-nos, mandou avançar,
enquanto ía dizendo “ estamos é bem fodidos, meu furriel! Os caçadores, com
armas automáticas, foram embora e nós ficamos aqui, neste buraco e com esta
merda de arma nas mãos (a velha Mauzer) à espera que eles (os turras) nos venham
apanhar, como ratos!”
Tem lá calma! O que se passou? Entretanto chega o sargento de dia
e lá foi dizendo que se ouviram rajadas de tiros durante quase todo o dia e que
os tiros de ensaio dos obuses, tendo como alvo o rochedo da Pedra Verde, tinham
caído cerca de oitocentos metros antes do objectivo, quase atingindo o pessoal
de IOL ( Informação, Observação e Ligação) destacado para aquela posição, o que
quer dizer que o mapa ou carta topográfica está errada na escala ou no cálculo,
tendo de ser corrigida
A confusão no eirado, era muita, já que o movimento dos caçadores,
avançar e ocupar posições, só se faria a seguir aos bombardeamentos da
artilharia.
De facto, mal acabou a refeição da noite, de rações de
reserva, foram reiniciados os primeiros disparos a valer, para lugar que todos
desconhecíamos e era mais que um!
Um deles, pela alça e direcção das bocas-de-fogo, era para um
ponto á esquerda do rochedo, seguiram-se outras direcções que, se desenhados os
pontos de impacto, acabaria por formar um ângulo de uns cento e cinquenta
graus; só naquela noite foram enviadas para os endereços, sem selo e sem
remetente bem perto de quatrocentas granadas, que os oito obuses enviaram, por
via aérea, como aerogramas de combate.
Durante a manhã a dose repetiu-se e agora com a presença dos meios
de comunicação, um repórter de rádio e microfone, para fazer o relato da guerra
e a tornar mais real! Era tão minucioso na sua função que, de microfone em
punho, braço esticado, queria gravar o som de uma granada a sair da boca-de-fogo.
Alguém lhe disse que teria de sair daquele lugar e vir para trás,
para junto do pessoal da respectiva secção, mas o repórter de guerra, bem
conhecido pelo seu destemor, fez ouvidos de mercador e, bravamente, lá ficou de
braço esticado, apenas recuando um passo! Quando a rajada de tiros começou, lá
pela peça mais distante do local onde ele estava, sorriu para o oficial que o
aconselhara, mas rapidamente, chegou a vez do primeiro de cento e cinco
milímetros, enviar a sua mensagem via rádio para um “saco” (código para todas
as radialistas e depois o número do saco, só vimos o micro levantar voo, levado
pela onda de choque e o repórter, aos tropeções, largando o rádio, fugiu
alucinadamente em direcção à barreira a pique, com uns quatro metros, só parando
quando, junto ao tronco de observação da Fazenda, se convenceu que os tiros
tinham parado: a sua cor queimada do Sol do Sul não deixava ver a lividez
interior que deve ter surgido logo no inicio da fuga.
Foi a gargalhada geral ! Só o padre Amador, bem distante das ondas
de choque, continuava de missal aberto, aproveitando a fraca luz dos
faróis, ia encomendando as almas dos que, porventura, naquela noite, a
entregaram ao Criador, abandonados os corpos e esperassem pela salvação no
final da viagem até à eternidade!
Sem querer ferir-lhe o fervor da fé e a brincar como era habitual,
perguntei-lhe se encomendava todas as almas ou se as dos “turras” não eram
incluídas?
- Não sejas herege, foi a resposta, sem qualquer azedume! Tudo o
que for feito para aliviar a tensão duma noite em branco, com os ouvidos a
zunir de tanto estampido, era bem vindo. O sorriso do alferes capelão era disso
a confirmação.
V
Ainda antes do almoço foi anunciada e a seguir confirmada, a vinda
de uma Companhia de Infantaria que iria ocupar a posição na kissacala, a
lendária sanzala, perto da base do rochedo, de onde sairiam os Caçadores
que para ali foram, na noite em que nós chegámos á Quibaba e que no dia
seguinte e noite, foi bombardeada.
Seria para lá transportada nas viaturas da bateria, uma vez que
eles não tinham transporte, como os Caçadores não tinham também. E assim foi.
Perto das três da tarde partiria com os infantes em direcção á kissacala. A
distância da Quibaba à Kissacala, em linha recta não parecia ser grande e não
era, de facto.
O plano que tracei mentalmente, em termos de tempo, dava bem para
ir e voltar. Mas do pensar ao executar vai, por vezes, uma distância muito
maior e diferente.
Saímos pelo acesso sul da Quibaba, já nosso conhecido do dia
anterior e escassos metros de estrada, virámos à direita, para dentro da mata,
densa e húmida, a uma velocidade de quase parados,
A seguir a uma pequena descida, para logo de seguida pararmos. A
noite pareceu cair mais depressa que no dia anterior. O verde daquele mar
vegetal absorvia a pouca luz que restava. Os faróis foram ligados e assim íamos
vendo que, de um lado e outro do trilho, havia árvores cortadas e deviam ser
gigantescas, dado o diâmetro do tronco cortado.
O barulho ouvido na noite da chegada, devia ser o do motor de uma
potente máquina a desviar os troncos para que as viaturas pudessem transitar.
Do que se ouviu comentar foi que todas as árvores tinham sido abatidas à força
de catana e braço! Impressionante!
A máquina, pelos vistos, apenas empurrou para a berma os gigantes
troncos, causa mais que suficiente para a coluna ir a passo de caracol; alguns
não deixavam passar e tinham que ser mais afastados.
O Tiago, exímio na condução, guiava-se pela berma do seu lado e eu
orientava-o pela barreira do meu lado. Devagar, muito devagar.
O calor e humidade eram tais, que mal se conseguia respirar; os
poros funcionavam em pleno, parecendo ventosas a trazer humidade de dentro para
a camisa e o ambiente carregado encharcava o lado de fora!
A certa altura apareceu um espaço, que parecia ser o de uma
entrada: do lado direito havia uma coluna em betão com cerca de metro e meio de
altura e do lado esquerdo, pude espreitar, estava um resto de outra que devia
ter sido igual. Constava, e penso que não era lenda, que ali era definida a
entrada da sanzala, que teria uma corrente presa em cada uma das colunas, na
qual estaria pendurada uma placa com a seguinte mensagem: “ todo o branco que
passar, morre!”
Um dos elementos de um grupo, que não foi dito o que faria por
aqueles lados, terá mesmo contrariado a ameaça, sendo de imediato atingido no baixo-ventre
por uma rajada de arma automática, tendo morrido com dezassete balas no corpo.
E terá sido naquele mesmo local que o Coronel, comandante da região
Militar, quase foi atingido quando, na visita de observação e
reconhecimento, dentro duma Panhard.
A partir daquele ponto a subida era tão íngreme que teve de ser
usado a tração às quatro rodas para se conseguir subir.
De acordo com as ordens recebidas do comando, os infantes, mal
chegaram, ocuparam as posições e eu comuniquei-lhe que não ía, aquela hora e
naquelas condições de tempo, voltar à Quibaba. Sairia logo pela manhã. Ele
concordou e disse que ia comunicar ao capitão Virtuoso.
Nessa noite, antes de dormir ou tentar dormir, na cabine da GMC,
ainda tive ocasião de me encontrar com um negro, com mais de cinquenta anos,
que se tinha entregado na véspera, vindo duma zona bombardeada, do lado oposto
da Pedra Verde, onde dizia haver esconderijos que seria difícil encontra-los
por o acesso ser difícil para quem não conhecer bem o local.
Foi também ele que me explicou a forma de conseguir comer as
carraceiras, que eu lhe disse ter abatido no trajecto do Caxito à Quibaba e que
as não conseguimos tragar; a fórmula era de, antes de as cozinhar, lhe tirar a
pele. Fiquei esclarecido e convencido de que o homem teria razão, mas não foi
confirmada porque não era amigo de caçar e aquilo sucedeu para gastar um
carregador da Mauzer que tínhamos achado de manhã na picada Sul da Quibaba e
que algum dos caçadores tinha perdido.
Voltando um pouco atrás.
Quando chegámos à Quibaba com três garças, uma delas atada na
frente da camioneta, como um troféu de caça, logo o comandante julgou e errou:
- De onde vieram as munições para andarem a fazer disparates, e
quem tinha sido o caçador, sabendo que gastar munições só mesmo se tiver de
ser!
O atirador fui eu e as balas gastas deviam ser de algum dos
caçadores que a perdeu depois daqui saírem! Foram gastas quatro e sobraram
duas!
- furriel Monteiro, está a tentar convencer-me de que com quatro tiros abateu
três aves, mesmo que poisadas estivessem!
Não pretendo convencer o meu capitão daquilo que não teria feito,
não faz parte da minha forma de estar na vida, errar e não assumir os erros;
mais claramente, foram abatidas quatro, só que na queda ficou presa num dos
ramos do embondeiro e, como já não estávamos muito adiantados decidi que a não
iria buscar!
- Estou a ficar curioso e com vontade de fazer a prova – disse a
rir!
Vamos fazer a prova, se achar bem! O nosso comandante escolhe um
alvo, a distância não é importante, eu vou pedir a Mauzer do soldado catorze,
foi com ela que atirei.
O alvo escolhido foi um ninho de formigas, ao longe, construído
num dos ramos a meio da árvore!
Meti o carregador com as duas balas e armei com uma bala já pronta
a ser disparada! Na GMC apoiei a arma na parte lateral, posso atirar de
joelhos? Claro que sim, respondeu o capitão.
Apontei, disparei e naquele ponto da árvore surgiu uma pequena
nuvem de poeira! Está visto que o furriel devia ser seleccionado para o próximo
concurso de tiro militar! Posso gastar eu a última bala?
Penso que nenhum de nós pode impedir o nosso comandante de o fazer!
Até estou curioso!
Passei-lhe a arma, preparou o tiro e pum, mas nada sucedeu na
mata, que se visse!
- Nunca fui grande coisa em pontaria, mas de certeza que em alguma
coisa acertei! Pelo menos numa árvore acertei! De certeza, meu comandante,
brincou um dos alferes! Com uma densidade de mata, só por milagre não acertaria!
Rimos todos! Ajudou a descontrair!
Voltemos à kissakala, que deixei para intercalar a cena das garças
e das dúvidas do capitão Virtuoso.
Perante a confirmação do desaparecimento da bandeira vermelha que
os binóculos da Quibaba avistaram, foi dito que dois militares, da Companhia de
Caçadores que saíram quando nós chegámos, se voluntariaram e foram lá acima
tirá-la e colocaram a de Portugal.
Fome não havia, mas a sede atormentava e o cantil, com uma água a
que se juntava o pó de uma saqueta e ficava com um sabor a laranja, estava
quase no fim. Aquela noite, somada às duas anteriores, sem pregar olho, mas
carregadas de emoções nunca antes vividas, trouxeram um invulgar cansaço. Mal
me encostei no banco da GMC dormi e profundamente, mas acordei os sonhos.
E lá vinha Luanda, cerveja fresca no bar do Miramar. Estava a
saborear o último gole do sono da Kissacala, quando acordo, sobressaltado, com
um tiroteio de armas automáticas que só numa refrega entenderia! Deitei mãos à
UZI, abri a porta que tinha deixado encostada e saí, agachado e a pensar que
tinha uma guerra a sério. Qual nada! Mal pus os pés no chão, o tiroteio cessou
quase tão bruscamente como tinha começado.
Vi, a escassos metros um fato camuflado e de G3 ao ombro, a quem
perguntei o que estava a passar e ele me responde, com o ar mais natural: “ é
tiro de reconhecimento, meu furriel!”
Não era fácil acreditar se alguém me contasse, que fossem
disparados para o ar, milhares de balas de reconhecimento! A quem estariam eles
reconhecidos para que, mal o dia era anunciado tinha de ser logo feito o
reconhecimento. Ainda com dúvidas perguntei ao soldado se era por estarem na
Kissacala e com o mesmo ar desinteressado, respondeu: “ fazemos isto todos os
dias ao alvorecer!”
Ai se o capitão Virtuoso sabe! Deu-me vontade de lhe dizer, mas
desisti de imediato, o que podia interessar ao soldado de infantaria o que
pensava um capitão de artilharia, Virtuoso. Temos que dar conta de cada munição
gasta e aqueles gajos a gastarem milhares, todos os dias ao alvorecer, como uma
saudação a um deus que os protegia? Ou só para fazerem barulho e descarregar
tensões acumuladas? Ou para ficarem bem acordados para as surpresas que o dia
de as trazer não se esqueceria!
Juntei os motoristas para marcar a hora de saída e ver se queriam
dar uma olhadela à Sanzala. Constava de meia dúzia de casas pobres, alinhadas,
todas iguais, formando uma espécie de pátio interior, uma clareira, a mata
estava logo ali, quase abafando as térreas casas.
Duas delas estavam chamuscadas e esventradas, pelos obuses que ali
tinham caído na primeira noite, a anunciar a chegada breve dos caçadores e no
meio do largo ou pátio, uma árvore, partida de alto a baixo e chamuscada.
Num dos lados do largo que tinha acesso à mata, havia uma espécie
de capela, feita de lianas e trepadeiras a servir de paredes e telhado, entre
um grupo de várias árvores; espreitei e vi três buracos no chão, com aspecto de
terem servido de campas mortuárias, mas vazias. Alguém comentou: “ eles, quando
mudam de local, mesmo em fuga, levam os seus mortos!”
Estranho! Muito estranho!
Deixámos a Kissacala e voltámos à Quibaba.
Os obuses continuavam a enviar as mensagens de morte, agora para
outras direcções. Ouvia-se, nalguns casos, o ruído do disparo junto a nós e
depois o da explosão da granada, este mais longo e abafado.
Recordei então o que disse o negro da kissakala: “ eles,
referindo-se aos que ele declarara ter deixado, têm muito medo do pum-cá, pum-lá!”
pois só quando a granada rebentava, no pum-cá é que se apercebem do perigo que
chegava antes do pum-lá; isto sem inimigo à vista!
Mais uma noite em branco, dormida nos intervalos das séries de
disparos e o sargento telegrafista, a noite toda ao telefone do rádio: “ saco
um, saco um, daqui saco quatro”, escuto. E o sargento da Quibaba, o saco um, na
mesma voz abafada e lenta. “Saco quatro, saco quatro, daqui saco um”, escuto.,
Saco um, daqui saco quatro, pede-se fogo de barragem para a concentração
quinze, repito, fogo de barragem para a concentração quinze, escuto; e o
sargento jipão, como lhe chamei em mil novecentos e oitenta e um, repetia
aquela monocórdica cantilena de sacos, e acrescentava: entendido.
Minutos depois lá ia mais uma série de granadas a fuzilarem o
ventre da noite e os ouvidos cansados dos fardados da Quibaba.
Vinha de seguida o saco três, que fazia igual pedido! Horas a fio
e nós sem saber o que afligia os outros sacos e isto enervava-nos a todos!
Uma vez mais era anunciada a chegada de uma Companhia de
Caçadores, vindos de não sei que parte do mundo, nem para caçar o quê!
Subiram a colina a pé, com ar cansado e farda mais que merdosa, de
tanto suor e terra; quase se arrastavam a subir a pequena encosta; mas nem por
estarem cansados, ou talvez por o estarem demais, deixaram de fazer estragos.
A colina da Quibaba, na encosta virada a poente, estava coberta de
plantas de abacaxi, com frutos pequenos, mas com um aspecto saudável, em
crescimento, mas atingindo o ponto só passados uns dois meses (contas minhas,
sem rigor algum). A cerca de duzentos metros, na parte plana havia papaieiras,
com frutos em redor do tronco, os de baixo já maduros ou quase, sendo cada vez
mais pequenos e no final da pirâmide um amontoado de flores brancas, a caminho
de novos frutos ! Havia bananeiras, de frutos verdes e com aspecto de não serem
da melhor qualidade.
Quase todos os cansados caçadores ou mesmo todos, além da oficial
espingarda G3, traziam também uma catana, arma esta bem mais útil em certos
pontos da mata, onde mal se conseguia entrar! Nesses locais a G3 devia só
estorvar.
Com a catana, numa atitude que parecia ter sido estudada, iam
cortando os pequenos abacaxis e com eles ensaiavam aquela ritual brincadeira,
quando a neve cai, de atirarem uns aos outros, aqui não as bolas de neve, mas
os abacaxis cujo crescimento foi interrompida pela catana dos fardados1
Riam como putos divertidos das graças de graça ausente! E só não dizimaram toda
a plantação, que era grande, por que o capitão se apercebeu e os intimou a
parar.
No dia seguinte confirmámos que tinham feito o mesmo ao passarem
pelas papaieiras e bananeiras, cortando o caule, frágil e destruindo os frutos
e a própria planta.
A destruição estava consumada, pelo menos durante uns tempos, até
que a recuperação natural se processasse
Safou-se o bananal principal, por ficar a uns cem metros da picada
principal, onde os caçadores passaram; com frutos maduros de sabor bem
diferente e melhor, do que o das bananas apanhadas verdes e depois metidas em
estufas ou, como faziam as quitandeiras, arrumavam as pencas dentro de cabazes
de verga e para acelerar o amadurecimento, colocavam no fundo um elemento
químico, porventura cal viva, cobrindo a estufa com um pano para aumentar a
temperatura.
Este bananal estava bem protegido pelo capim que, por não ser
cortado no tempo certo, tinha agora cerca de dois metros de altura, camuflando
as bananeiras, que só se encontravam, entrando na floresta de colmos de capim,
ainda verde e sofrer o poder abrasivo da humidade que defendia caule e folhas.
Melhorámos a tarefa da colheita, subindo para cima da cabine da
GMC, parada na picada (quase sempre era eu o escolhido) e ir indicando a estes
invasores do capinal, onde se encontravam as bananeiras com cachos já maduros e
que aprendemos a reconhecer, por estarem dobradas, quer devido ao aumento de
peso dos cachos, na fase final do amadurecimento, acrescido com o peso dos
macacos que, melhor do que nós, as localizavam e sem sofrer o efeito alérgico
que o casaco de pele os protegia; era uma espécie muito maior do que os saguins
da Fazenda Tentativa, exímios no exercício do salto de ramo em ramo do palmal.
Como as bananas que primeiro amadureciam, eram as mais velhas a deixar a deixar
a fase da inflorescência, eles tinham que subir para a bananeira e esta acabava
por ceder ao peso aumentado e não recuperava a posição anterior. Com a técnica dos
símios, nós aprendemos, vendo!
Os caçadores “descansaram” na Quibaba e na manhã seguinte, iriam
ser transportados pelas viaturas da Bateria cento e quarenta e sete, para outra
posição: Gombo do Zombo, um pouco para a direita da Quibaba, quase a nascente.
E assim sucedeu. Ainda manhã cedo, pequeno-almoço tomado, encheram
as caixas das GMC’s e partimos, atrás de duas Panhard que tinham vindo das
Mabubas, uma à frente da coluna e a outra atrás.
No final de pequena descida da colina da Quibaba virámos à direita,
eu a fazer companhia ao insuperável condutor, Tiago. As árvores. Naquele ponto
da mata, eram esguias e muito altas, por certo à procura da luz que a floresta
lhes negava! Eram todas da mesma espécie e tamanho, o que levava a pensar serem
de uma plantação, feita após um corte das anteriores, essas sim, endémicas como
as de toda a mata.
De repente surge-nos um ribeiro, atravessado com troncos de
árvore, a servir de ponte e que a Panhard destruiu na passagem. Eu ia mais
concentrado na mata do que na picada, essa era um assunto a que o Tiago estava
atento e ainda avisou “agarre-se, meu furriel” e ao mesmo tempo uma forte
pancada com a cabeça no teto da cabine e quase de imediato outra, menos forte,
quando o rodado traseiro bateu na berma do ribeiro e os caçadores que
transportava a gritar: “ porra, a gente não quer morrer hoje!” e nenhum caiu da
blindada caixa da GMC da secção que eu comandava.
As que vinham atrás, pelo menos mais seis, carregadas de
caçadores, devem ter sofrido um pouco mais, os troncos-ponte devem ter ficado
arruinados e a ponte deixou de ser passada e passou a ser saltada.
Uns cem metros à frente iniciámos a subida da picada que nos
levaria ao cimo da montanha, onde os caçadores e seu comando iriam ser apeados.
Os sulcos dos rodados eram tão profundos que em alguns pontos os
eixos da GMC raspavam na parte central, já coberta de ervas. Era de tal forma
vincada aquela faixa que poderia, sem perigo, não usar o volante, funcionava
como os carris para os comboios!
No alto da montanha havia um espaço que dava para as viaturas
fazerem a manobra de regresso e de onde se avistava a minúscula aldeia de Gombo
do Zombo! Esperámos até que a Panhard que fechava a coluna chegasse e deixar a
picada livre, uma vez que ali não havia hipótese de cruzar, nem retiros para o
ensaiar.
Nesse tempo de espera assistimos ao que não tínhamos visto ainda:
dois jactos, Fiat, sobrevoaram a zona, subiam para uma altura que seria a
aconselhada e de seguida, vindos dos lados da Quibaba, apontavam para as
pequenas casas lá em baixo, não ficando dúvida que era aquele o alvo, pelas
balas tracejantes que serviam para corrigir o tiro. Batiam nas casas, algumas
faziam ricochete e perdiam-se, ou na mata ou no espaço sem floresta em redor
das casas, onde deviam estar semeados mandioca e algodão. Pessoas, não vi uma
única.
Na terceira passagem, os Fiat largaram algo maior que mal atingia
o solo víamos um grande clarão de chamas que se elevava vários metros e de
seguida o som cavo da explosão: eram bombas de napalm, segundo informou o
oficial das Panhard.
Durou bem perto de uma hora aquele festival aéreo de balas e
bombas.
Havia troca de informações, via rádio, entre o comandante da
Companhia de Caçadores e o da Força Aérea! Mal estes desapareceram foi logo
dada ordem de avançar aos caçadores e estes, de espingarda G3 a tiracolo e aos
berros, desceram em correria a encosta, vendo-se que caiam com frequência, para
logo se levantarem e continuarem a descida, de uma acentuada inclinação e
coberta de vegetação muito densa, propicia a quedas e ferimentos que os houve,
de certeza.
Ainda vimos chegar os primeiros junto das casas, de armas prontas
a disparar, arrombar duas portas que não foram atingidas pelos Fiat, mas o que
antes era branco, estava negro pelo efeito do napalm e uma delas ainda ardia.
Antes de regressarmos, pelo mesmo caminho, foi-me comunicado que
um dos caçadores tinha perdido, devido aos solavancos da GMC, uma granada
incendiária, que trazia presa no cinturão.
Era mesmo o que nos faltava, para completar a manhã, sendo a minha
secção que iniciaria a descida! Porra, bem podíamos ter sido poupados a mais
esta merda! Um perde o carregador que acabou por sobrar para mim, agora este
deixa pelo caminho uma granada incendiária!
Tiago, vamos embora, vamos descer devagarinho. Eu em pé no estribo
direito da cabine e o nosso cabo no do lado esquerdo, temos que ver essa porra
antes de lhe passarmos por cima e nos incendeie a camioneta! E nos quilhe a
todos!
- Sabe ao menos de que cor é, meu furriel? Pergunta o Tiago.
Dei essas merdas todas na especialidade de munições, mas o caçador
não trazia com ele uma granada incendiária, mas sim uma ofensiva; ele ou quem
nos comunicou não deve saber a diferença e escolheu o nome que lhe ocorreu.
Cerca de cem metros percorridos, no “requeijão” entre os rodados,
lá achámos a granada que levei para a Quibaba. Se soubesse que estava naquele
sitio nem me dava ao trabalho de a procurar, naquele lugar nenhuma viatura a
pisava, mas é melhor prevenir do que remediar; não vos parece?
A agitação dos primeiros dias não tinha ainda terminado. Era menor
a quantidade dos bombardeamentos, mas continuava a ouvir-se ao longe, vindos de
várias direcções, o ruído característico de armas automáticas em grande
quantidade.
Soubemos que as baterias cento e quarenta e cinco e quarenta e
seis estavam também envolvidas na Operação Esmeralda, em outros pontos
estratégicos e apoiando outras zonas do conflito, certamente com outros graus
de gravidade que a nossa não teve, pelo menos até aquele dia.
VI
Todas as manhãs se apresentavam com nevoeiro, mais ou menos denso,
a envolver toda a mata em volta da colina e que só desaparecia muito depois de
o Sol espreitar por detrás da Pedra Verde.
A noite que se seguiu à da tomada de Gombo do Zombo, apresentou-se
com uma camada tão densa de neblina, que se foi transformando em quase
chuvisco, denso e sufocante.
Ao nevoeiro se juntavam os sons de tiros, mas agora parecendo mais
próximos e com diferentes sons. O jantar foi feito com todas as luzes apagadas
e uma tensão crescente se foi instalando na Quibaba.
Foram dadas ordens para reforçar a guarda com duplas sentinelas e
estacionar os jipes e jipões à volta do acampamento, de modo a que, com os
faróis nos máximos, iluminassem toda a orla da mata e sobretudo os acessos
possíveis
Quando o silêncio se fez, no acampamento se começaram a ouvir,
vindos dos mais diversos pontos da mata, sons que nós, tensos, cansados das
noites não dormidas, mas sobretudo ignorantes, tentávamos, em vão, identificar:
este é de onça, dizia um; aquele é de ave nocturna, dizia outro, e outros
avançavam, sem convicção, outros seres da floresta, mas tive e tenho dúvidas de
que algum acertasse.
Já perto do amanhecer, tudo encharcado e frio, o chuvisco parou,
mas o manto de neblina continuava a envolver toda a mata, ficando à vista uma
ou outra copa de árvore mais alta, lá para os lados da Pedra Verde.
O clarear da manhã mostrou-nos uma paisagem irreal, dando a
sensação de que aquele manto, de imaculada brancura, nos não deixaria afundar
se sobre ele nos deitássemos!
Ainda estes pensamentos não tinham ganho o espaço de registo,
parecendo mais líricos do que era habitual, tinham por base os sonos que não
foram compensados e insistiam na tentação de o serem, eis que alguém chama a
atenção para o mais distante ramo, sem folhas das poucas que perfuravam a
camada de neblina, onde se via um movimento, de tempos-a-tempos, nunca igual ao
anterior.
A notícia, ou novidade, foi circulando e passados instantes toda a
unidade e o oficial de serviço, sabiam; este oficial foi pegar nos binóculos,
para tentar identificar o que era aquilo. De má qualidade ou tão desactualizados,
como a carta topográfica daquela zona, o alferes não tirou qualquer conclusão.
Uma breve troca de impressões com o comando, foi avançada a pior hipótese:
devem ser os “turras”, escorraçados da Kissacala primeiro e no dia anterior, de
Gombo do Zombo, pelos bombardeamentos e pelos caçadores, a tentar reunir-se
para decidirem o que fazer a seguir.
Alertado o capitão Virtuoso, logo saiu da tenda, limpando os
óculos embaciados e pegando nos binóculos, assenta-os sobre a lente dos óculos,
regula-os uma e outra vez, mas o resultado era o mesmo do oficial de dia... e
da noite! Parece que uma bandeira branca se movia, em movimentos de leitura não
contida nos manuais da guerra. Deu ordem para reunir, tal como na noite
anterior, pegar nas armas pessoais, baixar os obuses para a posição de fogo directo
e atentamente aguardar e estar preparados para a possibilidade de um ataque a
qualquer momento,
A tensão, que já era grande, aumentou até ao limite da capacidade
de cada um! Quando o Sol subiu e os movimentos eram já vistos sem ajuda, ou à
tal “vista desarmada”, nada mais se conseguiu do que se tratarem de sinais cujo
código nenhum decifrava.
Este ritual pareceu durar uma “eternidade”, tal como a tensão no
aquartelamento, Varria-se com o olhar e com os binóculos toda a área
circundante à espera de encontrar respostas àquele código branco. Nada se viu.
Até que, inesperadamente e sem aviso, a bandeira branca se elevou
sobre o manto da neblina, transformada numa garça carraceira, indiferente ao
nosso medo, num voo elegante em direcção ao Sol!
Uffffff, foi o que se ouviu, num profundo alívio de todas as bocas
que espreitavam o fenómeno: Que grande susto a garça nos pregou!
Mais ou menos enxuta a plumagem que a neblina encharcou e
desentorpecido o movimento, a garça foi procurar noutras paragens o que
precisava e que àquela hora só poderia ser alimento! Companheira ou
companheiro, duvidei.
Terá assustado mais alguma Quibaba, noutro local?
VII
Uma semana passada e a guerra, ou mais exactamente, a Operação
Esmeralda, que eu pensava ser apenas um nome de guerra, vim a saber mais tarde
que o objectivo principal era mesmo a tomada da Pedra Verde, o tal rochedo, em
forma de punho, quando olhado da Fazenda Quibaba, que empunhava uma diminuta
bandeira vermelha depois trocada pela Portuguesa, estava a transformar-se numa
rotina.
A secção de reconhecimento e defesa imediata, que eu comandava,
nunca teve que defender coisa alguma, nem imediata nem tardiamente, ainda tinha
a sua dinâmica própria: acompanhar o furriel Raposo e seus colaboradores, na
logística da alimentação, às Mabubas ou a Luanda; descer ao vale da Quibaba, acompanhado
do negro que acabou por ficar connosco e já abandonara a fita que o
identificava na noite da nossa chegada e no meio do capinzal, cada dia mais
alto, procurar as bananeiras com frutos maduros ou quase, levando dois ou três
cachos para a Quibaba, servindo como suplemento de algumas refeições que
ficavam intragáveis.
Por vezes tinham que ser penduradas e abafadas, dentro das tendas
maiores, na dos oficiais ou na dos sargentos, acompanhadas de um cartaz com as tíbias
e caveira desenhados, durante a noite iluminado com uma lanterna, já com a
legenda: “quem mexer, morre!”! Nunca percebi que efeito poderia ter, mas quem o
fazia devia fazê-lo por algum motivo ou motivo nenhum.
O alferes Amador, capelão da unidade, de vez em quando
acompanhava-nos nas incursões ao bananal! Arrependia-se sempre, mas voltava!
O pessoal da secção nem sequer era muito virado para o palavrão,
mas quando o alferes nos fazia companhia, esmeravam-se na linguagem desbragada,
sempre com ar distraído; o alferes, com a sua habitual bonomia, ia perguntando,
sem esperar resposta convincente:
- Mas vocês sentem-se bem a dizer palavrões? Não seria melhor
experimentarem a rezar orações? Perguntava, com ar de quem não liga muito ao
assunto!
- Tem razão, meu alferes, avançava o doze, transformado em
porta-voz do pequeno grupo: “a partir de agora, quem aqui disser caralho,
fode.se!”
- Pronto, tinha que sair pior linguagem! Comentava o alferes!
Riamos todos e o alferes, notava-se, com esforço, ia silenciando a
vontade de dar uma sonora gargalhada!
Quando aparecia um cacho maior, já com várias bananas comidas,
ouvia-se dizer, lá do meio do capim: “este era dos grandes, meu alferes, mas os
gajos adiantaram-se e comeram as melhores todas! Ainda hei-de foder os cornos a
estes gajos! Macacos de merda!
Aqui o capelão ia aos arames ou fingia ir:
- Pronto, faltava esta; e é sempre o mesmo...mas deixa lá, que eu
irei rezar para que tu e todos se portem bem e nada de mal lhes suceda! Que
Deus te perdoe!
Gargalhada geral!
- Que Deus me perdoe era o que me dava jeito, até por que não
viemos para aqui como voluntários! Eu prometo que depois da guerra me vou
portar bem.
O negro ria com aquele palavreado, mostrando uma dentadura de
brancura e correcção impecáveis. E logo o bigodes, safado, pedia desculpa ao
Gil, nome que nós chamávamos ao negro e o riso passava a gargalhada!
E lá regressávamos ao alto da colina, levando alguns cachos de
bananas e algumas papaias, poucas, porque as que estavam a produzir em pleno,
foram caçadas pelos caçadores, roubando-lhes o sustento.
Numa das viagens ao bananal, apanharam-me distraído, ouvi dois
tiros e vi que um dos soldados tinha disparado contra um símio. Não foi o que
prometera fazê-lo no dia em que estava o alferes.
Quando cheguei, com os outros, junto do animal, ainda com vida,
fiquei profundamente abalado: o animal, de pelagem brilhante, escura no dorso e
clara no ventre e peito, robusto e com aspeto saudável, a sangrar junto a uma
das patas da frente, com ambas as mãos segurava a cabeça, onde não tinha sido
atingido. A atitude seria, nos humanos, a de estar com uma forte dor de cabeça,
de preocupado ou de surpreendido com algo que vê.
O Gil afirmou que “aqueles macaco preto” morriam assim.
Quando eu disse que não permitia que tal voltasse a acontecer,
logo os dois autores dos disparos juraram que nunca mais o fariam. Estavam
chocados com a atitude do animal.
O abuso de disparar sem “autorização” do capitão e se tal
sucedesse teriam de ser explicados os motivos e a quantidade de balas gasta,
passou a não ser uma disciplina a ter em conta, a partir da alvorada na
Kissacala.
No regresso das Mabubas e como era hábito desde há duas viagens
anteriores, parámos no Úcua.
Alguém, não soube se seria o proprietário antes da grande confusão
naquela zona ou se um corajoso a aproveitar o movimento naquela altura, abriu a
padaria, com um pequeno telhado sobre a porta e começou a vender o pão e umas
latas de conserva e cerveja.
Ali passámos a tomar o pequeno-almoço: pão com atum e cerveja. Que
bem sabia àquela hora, entre as dez e onze horas, sentados no chão ou em
troncos cortados a servir de banco, em volta de uma mesa de grossas tábuas,
restos da serração que laborou na povoação, um pouco acima do lugar onde se
ostentava a morte, espetada nas pontas de paus; ao quarto dia já só havia paus;
“as cabeças de carapinha devem ter ido procurar os respectivos corpos para se
juntarem às fileiras dos que defendiam o que diziam ser deles!”
Num desses dias, descansados a iniciar o pequeno-almoço, vindo de
Norte, a grande velocidade, aparecem dois jipes e um coronel, aos gritos,
mandava toda a gente recolher ao quartel, ao que logo percebemos, o aeródromo
que existia uns duzentos metros antes da entrada no Úcua, do lado direito de
quem vem de Sul, tal como ficou dito antes.
Pequeno-almoço interrompido, todos a subir para as GMC’s, a da
minha secção e a do Raposo, que tinha ido reabastecer-se nas Mabubas e lá
seguimos para o tal quartel.
Calmamente, passeando com as mãos nas costas e numa delas um
pequeno pau, que comparei à batuta dos maestros, em cabelo, um furriel ria
alto! Dirigiu-se a mim, mal saltei da GMC e “ mas que merda é essa,
Monteiro?!”, apontando para a UZI que era a minha arma? Era o inefável Araújo,
de Vendas Novas, de Sacavém e do Vera Cruz, dos elásticos de musculação e das
bebedeiras.
Que merda é essa pergunto eu?! Então a tua arma?! Não ouviste o
coronel aos gritos para tudo recolher ao quartel, que em breve iríamos ser
atacados?! Tirou as mãos de trás das costas e, mostrando o pauzinho, bem polido
das mãos e ao mesmo tempo que me abraçava ia dizendo: “não ligues, esse gajo é
um matraquilho; chegou há meia dúzia de dias e vê “turras” e ataques a toda a
hora e todo o lado!”
- Parece que um dos carros, que foram atestar os tanques de água
no rio, terá sido atingido por um disparo, nada mais!
- Olha, lá vêem elas as duas, sem pressas! Apontou o Araújo.
E lá vinham as duas GMC’s, cada uma com seu depósito em dentro da
caixa.
- E que andas por aqui a fazer? Interroga, a rir!
Recordas-te daquele nosso camarada de Curso, em Vendas Novas, o
pequenino Sousa?
- Que fez parte daquela bruta bebedeira que deu uma confusão dos
diabos? Frisou o Araújo.
Exactamente! Desta vez foi o paludismo e teve que ir para o
hospital e eu estou a fazer esta parte da guerra por ele!
- Lá se safou desta, o nosso Sousa! É pequenino...!
Esta cena, narrada à velocidade da guerra, durou bem perto de uma
hora.
O Raposo, que não conhecia o Araújo, quis saber quem era, devia
ser um fulano divertido! Prometi pormenores, mas não agora, senão o pessoal tem
que atacar as rações de reserva.
Despedi-me do Araújo, dei-lhe referências para Luanda, prometeu
que me procurava se até Luanda fosse, levei um abraço para o Zé Maria e para o Chucha
e mandei o pessoal se acomodar, para largarmos para a Quibaba.
- Eu não saio daqui! Quase gritou o cabo apontador!
- Não vou meter-me na boca do lobo! Eles depressa chegam do rio e
nos esperam na curva! Acrescentou o cabo!
O raciocínio até podia estar certo, mas o que não podia era deixar
um dos homens para trás. E ele, primeiro-cabo, o mais graduado a seguir a mim,
sendo eu quem comandava a secção e, naquela condição era também o chefe da
viatura.
Disse-lhe que ali não ficava e que ocupasse o seu posto na
camioneta, para não perdermos mais tempo.
- O meu furriel não me vai obrigar, tenho com que me defender! Mostrando
a pistola Walter que era a sua arma pessoal, uma vez que a metralhadora estava
fixada no taipal junto da cabine da GMC.
Houve um movimento espontâneo dos outros elementos e ele viu que
tinha cinco mauzer’s, na posição de tiro instintivo para ele viradas, menos a
minha UZI que continuava pendurada no ombro direito com um carregador de vinte
e oito balas!
Mas que merda é esta? Referindo-me aos soldados.
Quase em coro eles frisaram que íamos todos, ninguém ficava para
trás!
Vá lá, nosso cabo, vamos para a Quibaba que estão à nossa espera!
E lá subiu, sem remoques, mas eu fiquei preocupado com a humilhação que o cabo
deve ter sentido.
O incidente foi por mim omisso, mas no dia seguinte,
inesperadamente, o cabo foi substituído. Perguntei ao oficial de dia se sabia o
motivo da alteração e a resposta foi: “são ordens do nosso comandante, o nosso
cabo fica a descansar!”
No dia seguinte voltou, nenhum falou do incidente ou incidentes e
assim ficou sanado até eu ser substituído.
VIII
A GMC da minha secção, devido ao enorme peso da blindagem e aos
maus tratos sofridos, sobretudo nos trajectos para a Kissacala e para Gombo do
Zombo (a passagem sobre o ribeiro deixou marcas irreversíveis!), para transportar
os Caçadores, começou a fazer uns barulhos estranhos, que o cabo mecânico,
sabedor do oficio, diagnosticou-lhe “barras de suspensão deslocadas” e que ele
não tinha meios para a reparar. Teria que ser reparada nas oficinas de
material, em Luanda e antes que fique na estrada, sem motor!
Tinham que ser tomadas medidas e ficou marcada, para o dia
seguinte, a viagem para Luanda, deixando lá aquela e trazer outra.
Apareceram de imediato dois voluntários, para irem no meu lugar e
eu poder descansar uma noite, já que era o único da secção que não tinha
descansado: um alferes e um furriel: o primeiro aproveitava para ir levantar
uma encomenda que a família tinha mandado da Metrópole e o furriel, simpático,
foi o que invocou o meu descanso.
A partida para Luanda ficou marcada para depois do almoço, indo
também o mecânico para acorrer a qualquer problema que pudesse surgir e ele
pudesse resolver.
No dia seguinte, após o almoço, como tudo estava planeado para a
ida a Luanda, desejei boa viagem aos elementos da minha secção e ao alferes,
naturalmente; não vi o furriel que me substituiria, como ele mesmo tinha
sugerido, mas nem seria preciso, pois nos conhecíamos bem e sabia que lhes
desejava boa viagem. E dispus-me a ir tomar um duche e dormir.
O duche, em campanha, para quem não conheça, é uma armação
metálica com duas peças cruzadas no topo, que servem para manter equilibrada e
estrutura, sendo no ponto do cruzamento que é fixada a haste que na extremidade
são fixados o chuveiro e onde o balde, de lona, é pendurado. Tudo preparado,
toalha e roupa lavada, entrei para a “casa de banho”, já com o balde cheio e
comecei a despir-me: a camisa foi posta fora da tenda para fazer companhia às
meias e botas que não entraram. Quando estava já a tirar a segunda perneira das
calças, o balde, porventura mal atado, decidiu que a água que continha, perto
de dez litros, não passaria pelo crivo do chuveiro e despejou toda a água em
cima de um mal despido furriel.
A tenda estava instalada na parte da colina virada para a picada,
que tinha percorrido para levar os Caçadores que tomaram Gombo do Zombo; o
terreno, daquele lado, estava coberto de tomateiros, com imensos frutos
maduras, pouco maiores que cerejas e no aquartelamento só havia homens, todos
adultos.
Depois de ter calado um chorrilho de palavrões, decidi vestir a
perneira das calças que já tinha tirado e decidi que não voltava a encher o
balde, mesmo que andasse carregado de merda até ao final do destacamento! E
pensei mais: de quem me resguardava eu se não havia crianças nem mulheres por
perto ou por longe? Fiquei satisfeito quando culpei o cansaço e a minha
inaptidão para fixar o balde.
Peguei na trouxa e fui para a tenda, acompanhado de umas quantas
palmas e muitos risos e alguns comentários dos que assistiram à cena! Uns
piretes foi a resposta o que ainda mais risos provocou. Até o Gil se fartou de
aplaudir! Boa gente esta, da guerra.
Estava a estender-me para dormir, quando o oficial de dia levantou
a cortina-porta da tenda, espreitou e disse que não valia a pena deitar-me por
que tinha que ir para Luanda, o furriel voluntário interrompeu o voluntariado
que não saiu do plano e comunicou que não iria a Luanda.
Ele, furriel, não explicou a razão da não ida, mas todos terão
percebido, embora nenhum comentasse.
Não sei como serão as guerras ditas mundiais, nem qualquer outro
tipo de guerras, mas da minha guerra estava a fazer uma boa formação! Por um
motivo ou outro, as coisas estavam atrasadas e a hora fixada para a partida foi
sendo adiada e o que se pensava chegar ainda de dia à Tentativa, passou a ser
uma miragem: a maior parte da viagem ia ser feita durante a noite, sendo este o
principal motivo da recusa do camarada furriel, de quem não citarei o nome! Da
mesma forma que desisti do duche iria agora desistir da folga.
Não achei piada a esta reviravolta, mas depois de um pequeno
balanço da situação, até achei que ia ser vantajoso: iríamos parar na Tentativa
e em aproveitava para tomar o adiado duche e livrar-me daquela roupa que metia
nojo, de tão suja.
O termo “nojenta” não é excessivo! Aquele conjunto de calças e
camisa já andava no corpo há dez dias! A camisa tinha absorvido o suor durante
o dia e a humidade durante a noite, a que juntava a poeira das estradas, de
terra batida, estalava como se fosse de oleado, quando a dobrava para avaliar a
impermeabilidade. Só as cuecas é que iam sendo mudadas e não era todos os dias.
Vamos para Luanda! Agora.
A coluna era composta por três viaturas: a GMC da minha secção,
que ia para o hospital das camionetas, a do Raposo, que teria de servir de
apoio no caso de a minha fraquejar e um jipe onde iria o alferes e motorista.
Ao passarmos pelo Úcua, dois dias passados sobre a última vez, já
nem paus havia: ou foram queimados nalguma fogueira, ou levados como recordação
por algum coleccionador de troféus macabros, ou levados para substituir outros
de alguma cubata que a guerra destruiu e que algum dos moradores tivesse
escapado, o que duvido, pois nunca vi um único negro na Vila e brancos só o
padeiro e os militares que estavam no tal quartel do Araújo e do Coronel que só
dois dias antes conheci.
O espectáculo de horror tinha passado à história da memória dos
que o testemunharam e registado em fotos de alguns, poucos, pois as máquinas já
estavam sendo proibidas e a que um dos soldados da Manutenção tinha escondido,
depressa ficava sem rolo e era substituído só quando íamos a Luanda. Ainda
conservo algumas, da Tentativa e das Mabubas, uma meia dúzia.
Quando chegámos à Tentativa, já a hora do jantar tinha passado,
mas havia grande movimento junto do hospital, invulgar, acrescento.
O responsável do refeitório da Fazenda ainda arranjou jantar para
mim e o alferes e todos os que nos acompanhavam podiam jantar também, excepção
daquele dia, noutras condições, como as da permanência da unidade, só tinham o
compromisso de servir as refeições a oficiais e sargentos. Todos sabíamos que
era essa a directiva, nada a estranhar; bem ou mal, a decisão foi noutro
patamar tomada!
Uma jardineira excelente nos foi servida e que a todos caiu às
“mil maravilhas!”
Acabado o jantar avancei para o balneário, que ficava junto do
hospital.
Ouvi gritos e gemidos em vários tons e vozes. Entrei no hospital e
deparei-me com um corredor que mais parecia um filme de terror! Havia corpos em
cima de mesas e vários no chão, sobre cobertores; o sangue era a mancha mais
evidente e os gritos de alguns eram lancinantes e era dos do grupo que não
sangrava, mais parecia terem sido retirados de um incêndio; outros estavam
silenciosos e quietos, certamente não aguentaram as dores e desmaiaram, reparei
que respiravam, mas alguns deviam ter já passado a fronteira da vida para a
morte, da terra para o seu lugar que, no Céu, o alferes Amador lhes deve ter
reservado, com as suas orações.
Uma bata que antes devia ter sido toda branca, era agora uma
vermelha mancha, a frente e ambas as mangas, escolhia entre aquele caos, com a
experiencia que por certo tinha e que a mim não foi dado. O que se passou, sabe
senhor doutor? Perguntei.
- Terão sido dois acidentes, segundo soube: uma granada de
morteiro que explodiu dentro do tubo ou à saída deste, ferindo todos os que
estavam por perto; o grupo dos queimados, foi uma granada de bazuca que não
explodiu e foi achada por um pelotão. Um dos soldados terá dito para não lhe
tocarem ( devia ter algumas noções ou fez o curso de munições, dedução minha),
pois costumam explodir ao mínimo movimento! O alferes, comandante do pelotão,
“sabedor” terá dito, a sorrir, que se não explodiu na queda, também não é agora
que vai explodir e, decidido, baixou-se e puxou a granada pela parte que estava
à vista! A explosão foi imediata e dela resultaram queimaduras graves em
vários, que não terão hipótese de se safar, mesmo que tivéssemos outros meios
para os assistir. Alguns vão já a caminho de Luanda e aguardamos mais
transportes para levar outros! Os Heli não voam de noite e mesmo que voassem
não adiantava muito, por lá também está tudo complicado, parece que houve
confusão noutros lados!
Toda esta conversa foi comigo atrás do médico, que parecia sentir
necessidade de falar com alguém! Mal apanhei uma pausa quase fugi para o
balneário! A morte não me perturba por aí além, mas a dor deixa-me num estado
de revolta quase sem controlo.
E dava comigo a pensar: se o alferes tivesse as noções básicas de
como lidar com as munições ou tivesse dado ouvidos ao soldado, todo aquele
sofrimento tinha sido evitado; ele, alferes, era dos que o doutor dizia que não
tinham hipótese de se safarem, dada a gravidade das queimaduras.
À água que corria do chuveiro juntaram-se as minhas lágrimas, num
inusitado pranto ao pensar naqueles gritos que saíam pelas frinchas e pareciam
invadir todo o palmal; mas era também o cansaço de quase dez noites aos tombos
pelas estradas ou aos saltos pelas picadas; tentar dormir era mesmo só uma
provocação, nos intervalos dos obuses, noites inteiras a descarregar bombas
para lugares que não se sabia onde ficavam.
Senti-me melhor depois do duche: mais fresco e mais lúcido.
Demorou juntar o pessoal, disperso pela curiosidade dos gritos e o alferes
tinha encontrado um amigo, com quem conversava, em pé, junto à cantina e tive
que lhe dizer...quando o meu alferes quiser, podemos avançar para os cinquenta
quilómetros até Luanda. Não há pressa, a camioneta só vai ser recebida depois
das oito da manhã.
Ainda não tínhamos saído do perímetro da Fazenda, certamente ainda
se ouviam os gritos no hospital e eu já tinha caído num sono profundo, do qual
saí com o chamamento “ meu furriel, meu furriel”. Mal abri os olhos e estava a
pensar que estaríamos a ser atacados, tal era o efeito do sono e da cena no
hospital.
UZI destravada avancei para junto da metralhadora e o que vi, uns
vinte metros à frente, na estrada, encandeado pelos faróis da GMC, foi um
coelho, de orelhas erguidas, incapaz de escolher o caminho a seguir! Com a UZI
regulada para tiro de rajada, fui disparando, em pequenos intervalos, sobre o
animal, obrigando este a executar uma feia dança na noite e cada vez mais perto
da camioneta, que continuava a andar! O Tiago travou e as últimas balas, devido
à travagem, foram sobre a cabine da GMC. Por cima da cabeça do cabo mecânico,
que seguia na cabine com o Tiago.
Um dos buracos era enorme, indo do meio da cabine até ao pára-brisas,
onde deviam estar duas balas alojadas.
Saltei da camioneta, em pânico, convencido de que algo de grave
tinha acontecido! Dois soldados foram buscar o coelho e eu abria a porta do
lado do cabo e esperei que saísse.
À luz dos faróis da GMC e as do jipe que seguia entre mim e a do
Raposo, o mecânico apalpava-se e ia dizendo: “eu sei que as tenho cá dentro,
meu furriel, mas como estou quente não as sinto!” E levantava as perneiras das
calças e eu esperava ver um fio de sangue a escorrer-lhe para as botas! Nada,
meu furriel! Abraçámo-nos!
Olhei para o interior da cabine e lá estava o traço de uma das
balas que ainda rasgou o forro do teto, seguindo para o caixilho do pára-brisas,
onde ficou alojada.
- E agora, furriel Monteiro? Interroga o alferes.
Faça o que tem de ser feito, meu alferes, respondi. E, já agora,
se achar importante, mencione também, que o furriel Monteiro viaja sem capacete
e que dorme sentado, com a mão direita fechada, sobre o cano da UZI, para
servir de almofada ao queixo.
- Que conta vamos dar das munições? Insiste o alferes.
Oiça, meu alferes, o Tiago que lhe conte como fazem os caçadores,
pelo menos os que fui levar à Kissakala na nossa segunda noite de chegada!
IX
O cabo mecânico e o Tiago deram-me a notícia na Maianga, onde eu
tinha ido largar a roupa para lavar e trazer outras lavadas para ir mudando,
onde encontrei o Pinto e o Magalhães, que fizeram uma grande festa ao camarada
de quarto que foi mandado para a guerra!
- A camioneta está a ser reparada e por volta das dez horas está
como nova, soldada e polida!
Cerca das dez horas. Com o Sol a aquecer Luanda, formámos a
coluna, trazendo o alferes uma caixa de Whiskies, a tal encomenda que tinha
chegado de casa e estava guardada em Luanda.
Na Tentativa tudo parecia mais calmo. Aproveitei e passei, com o
bigodes, para o jipe do alferes e continuarmos a conversa iniciada ao
pequeno-almoço na Tentativa e que era a de provarmos o whisky do alferes.
A garrafa, já aberta pelo alferes e o amigo que tinha encontrado
na véspera, estava já a ficar quente, mas entre risos à volta das partes-gagas
da nossa guerra despejamos o resto e ainda pedimos mais uma para ser bebida
pelo pessoal da secção de Defesa Imediata e outra para a camioneta do nosso
fornecedor do rancho, o furriel Raposo. Aceitou.
Só se manifestou quando, no Úcua, reparou que três garrafas tinham
ido à vida e a quarta estava menos de meia.
Vá lá, meu alferes, esta guerra é uma merda e nós somos uns
guerreiros de trazer por casa! Bebamos a essas virtudes, meu alferes! E a
quarta garrafa acabou.
Na Quibaba encontrámos tudo calmo, não havia tiros e estavam
ansiosos pela nossa chegada e dos cigarros, a granel, que íamos buscar à
Tabaqueira de Angola e que num instante desapareciam.
Eu fumei o meu cachimbo, meio toldado do Whisky quente e da viagem
louca que tivemos.
No dia seguinte fui chamado ao Comandante, que me perguntou se era
verdade ter dado boleia a uma negra!
É verdade, com uma criança nas costas e uma trouxa à cabeça,
descalça, que caminhava em direcção ao Caxito! Como aceitou a boleia, eu
levei-a!
- Mas não sabe que é contra o Regulamento transitarem civis em
viaturas militares? Lembrou o Capitão Virtuoso.
Sei, sem dúvida, meu capitão!
- E não pensou que ela podia ser o isco para uma emboscada?
Acrescentou.
Não, meu comandante, não pensei em tal coisa!
- Como deve calcular vou ter de participar ao Comandante do
Pelotão, não tomando eu qualquer outra medida por o furriel Monteiro estar
destacado na bateria que eu comando.
Faça como achar que deve fazer, meu comandante, mas agradecia que
mencionasse mais isto: se, até final do destacamento, o furriel Monteiro voltar
a encontrar, naquelas condições, uma negra ou uma branca, mulher ou homem,
voltarei a violar o Regulamento e levá-los-ei ao destino!
- Farei isso, tal como pede, mesmo que discordando dessa atitude,
furriel Monteiro! Respondeu e deu por terminada a entrevista.
Até final, que foi no dia vinte e seis de Setembro, só houve
rotina! Estiveram na Quibaba outras unidades, de passagem e nada mais a
salientar.
No dia vinte e seis regressei a Luanda e o furriel que esteve
hospitalizado, já com alta hospitalar, faria a viagem de regresso.
Ia ele para a guerra. Desejei-lhe e aos meus camaradas da secção,
uma boa viagem e sorte também. Comovidos, eu e eles.
Soube, uma semana depois, no GACL, pelo pessoal que eu tinha
comandado, que o furriel Sousa, logo na descida para a Quibaba, pela entrada
Sul habitual e que a secção conhecia bem, a Norte só serviu na noite da
chegada, um pouco antes de entrar na curva para a direita, com a mata do lado
esquerdo e uma colina do lado direito, decidiu disparar uma rajada de UZI,
dizendo que era de reconhecimento.
Só que, em sentido contrário, vinha uma unidade de Infantaria que
tinha ficado na Quibaba e ia para outra posição, devem ter pensado que era uma
emboscada, despejou sobre a mata milhares de tiros de G3 e de canhão, pensando
que a rajada tinha partido da mata.
O Sousa e todo o pessoal da secção estiveram enfiados debaixo da
camioneta, só de lá saindo, cerca de meia hora depois, quando o Comando da
Companhia de Infantaria, achando estranho não ter nenhuma reacção do outro
lado, deu ordem de cessar-fogo e de avançar a secção de reconhecimento, que
deparou com aquela cena de aterrorizados artilheiros.
- O chão da picada, quando por lá passámos, dizia o bigodes, tinha
tanta cápsula de balas de G3 que os pneus faziam ranger ao passar sobre elas!
Eram muitos milhares!
- Que sorte nós tivemos, furriel Monteiro!
Reis Caçote
1961/2002 dig.
ESTA ERA UMA DAS PEÇAS DE ARTILHARIA
DA BATERIA DE ARTILHARIA 147, DO 3º PELOTÃO, NA PRIMEIRA TENTATIVA DE TOMAR A
PEDRA VERDE!
|
NÃO
RECONHEÇO O LOCAL, MAS PENSO SER A 1ª ABORDAGEM À PEDRA VERDE!
NESTA BATERIA ESTIVE DESTACADO, 26 DIAS, EM SETEMBRO/61
A MUIDO BADALADA "PEDRA VERDE" VISTA A PARTIR DA PICADA
QUE VAI DAR A KISSAKALA!
Foram milhares de fotografias e penso que até uma curta metragem de
um amador de cinema chegou a ser feita. Todos ficavam de mal com o saguim, mas
nenhum, eu incluído, tomou a iniciativa de pegar num canivete e libertar a
parelha. ou alguém, não atava nem desatava:
O que aqui está a faltar é a politica do saguim!
Não entendiam a que eu me referia e acabei por ter de explicar qual a
origem do dito.
E não estranharei muito se ainda tiver de o dizer muitas mais vezes!
Reis Caçote
1962/dig.2017. (sem revisão e não tendo em conta o acordo ortográfico!)
NÃO ERA TÃO REQUINTADO, NEM O ESPAÇO ERA TÃO ATRAENTE!
ESTES SÃO, DO SANTO ANTONIO, EM LISBOA, DE UM DOS ANOS!
ERA O QUE O RAFEIRO
FAZIA, NO GACL, DESCANSAVA, DORMITANDO! |
A SUA POSIÇÃO ERA DE
SONOLÊNCIA, SEM ESBOÇO DE VIGILIA! |
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