POESIA NÃO TEMÁTICA - tempos de reflexão e de rebelião
POESIA NÃO TEMATICA
…tempos de reflexão e rebelião…
1 - FRIEZA
Dos olhos daquela criança
Que chora
Aparei cristalinas
De cada olho uma lágrima
Que coloquei nos teus olhos de estátua
Insensibilidade de pedra
Já que nunca tinhas chorado:
Nem lágrimas de criança se ajustam
Aos teus olhos !
Serão de vidro ?!
Reis Caçote
2 - ORATÓRIO
Atrás daquela janela
Está acesa uma vela
Não alumia um altar…!
Mas a fotografia de um militar !
3 - EMIGRAÇÃO
Para terras de França partiu
Mais um irmão…
Como os outros clandestino
Analfabeto como os outros.
Ficarei mais rico sempre que um irmão parte ?!
Não !
Como eles reneguei a herança
Mas nunca partirei para terras de França.
Enquanto em mim residir a esperança
Não a apregoada na fé
Mas a na falta de fé idealizada
Em cada dia
Apenas de poentes
Que só a natureza
Se permite colorir !
Reis Caçote
3 - DO HERÓI
Meu remo partido no lombo do mar
Meu coto de braço perdido na guerra
Meu resto de perna amputado de bomba
Meu olho a menos perdido na mata
Meu pensamento interrompido pela última explosão.
Coto de braço
Resto de perna
Olho a menos
Pensamento interrompido
Meu remo partido no lombo do mar
Sou o que resta de um Herói da guerra !
Reis Caçote
4 - “ONU – NATO
Farto de frio
Farto de fome
Farto o frio de fome
Farta a fome de frio
Vietname ! Paquistão ! Biafra !
Discussões duras nas Brancas casas
Sobre a fome de frio farta
Sobre o frio de fome farto
Nas Casas Brancas discute-se duro
Sobre as casas sem côr
Dos de fome fartos de frio
Dos de frio fartos de fome
A frio se discute duro nas Casas Brancas
Alçapões de consciências !!!
Reis Caçote
5 - OTORRINO
E do alto da vestida sabedoria branca
Brotou a negra sentença:
Tens de pensar em ser operado !
A partir daí
Nos olhos e mãos do sábio !
Passei a ver só um bisturi !
Grande demais para amputar
Minhas cordas vocais !
Mas aqui para nós:
Se tiver que ser operado
E gritar não for capaz
Virei à mesma p’rá rua
Com meu grito num cartaz !
Sempre que tiver razão
Lá estarei de cartaz na mão
Calarem-me é que não !
E se meu grito
Não couber num só cartaz
Gritarei em dois
E se preciso for escreverei
Pela frente e por trás !
E se me cansar do cartaz
E continuar a ter razão
Como agora
Olharei para trás e
Num repelão
Deitar-vos-ei a língua de for !
Não esperarei que m’a puxem
Nem ouvirei vosso palavrório
Como sucedeu naquele dia
No teu consultório !...
Reis Caçote
6 - GUIA “TURISTICO”
Vedes além
Engravatado
Aquele homem parado ?
Não é um vadio
Um ocioso
É um “senhor deputado “ !
A atravessar a rua
Gordinho
De charuto na boca
E olhar sinistro ?
Não é um assassino
Nem um cauteleiro
É um post-ministro !
Daquele lado
Com duas moletas
Em metal cromado?
Não teve um acidente
Veio da guerra
Era soldado !
Lá em cima
A meio da encosta
A luzir ?
São telhados de barracas
De gente humilde
Para demolir !
E aquele todo sujo
De andar lento
E grande cifose?
Não é um desempregado
É um mineiro
De pulmão silicose!
E no alto da escadaria
Aquele sujeito
com ar de zangado
Não é um professor
Não é um aluno
É um Pide disfarçado!
Reis Caçote
1969/
7 - PRIMAVERA
Dia 21 de Março…
Levantei-me cedo e fui acordar o Sol,
Tinha a intenção de em seguida ir
Escrever uma ode à Primavera !
Ruiu pela base o plano ao recordar o
Abate sistemático e organizado
De qualquer tipo de arvores e no lugar delas
Acumular toneladas de cimento e tijolos
Desequilibrando o sistema anterior.
É Primavera !... ( e por aqui ficou o poema )
Agora vou para a rua construí-la !..
Reis Caçote
8 - A CARA DO ÂNGELO
Trazia no rosto o rubor e a alegria
Dos catorze anos incompletos
E da corrida do atraso para o jantar.
- então que houve ?!
Espontâneo ! Alegre !
Estivemos a preparar uma insurreição !
- … ! Uma insurreição ?!...!...!
Metemos pregos e fósforos em todas as fechaduras
Do prédio aqui ao lado !
Metemos na estrada aqueles ramos de oliveira
Que foram cortados há dias ao fundo da rua !
O atraso foi maior por andarmos à procura de um policia
Para o atropelarmos com as nossas bick !
Desculpa lá o atraso, mas tinha de ser! …
Posso ver o último telejornal ?
…?!...
É só para ver a cara do Ângelo !!!
Reis Caçote
9 - INVASÃO DO CIMENTO
Para silenciarem o coaxar das rãs no charco
Construíram de cimento um mausoléu
De oito filas de “gavetas”
A seguir à minha janela das traseiras
Roubando-me
Insensatos insensíveis
O pomar
O rio
O Sol
A Lua
Mas eu invento-os :
Com rãs no charco
E a espreitar pelas janelas !
Reis Caçote
10 – PROMESSA
Fica a solene promessa
De contar todas as estrelas
Assim que desapareça a tristeza
Dos olhos das crianças !
Reis Caçote
11 - OFERTA
Dentro em breve oferecer-te-ei
Naturalmente
Este jardim
Com rosas e pássaros coloridos
Poisados dentro dos teus olhos !
Reis Caçote
12 - NO JARDIM PUBLICO
Esfreguei com força
Uma duas três vezes os olhos.
Aquela imagem mantinha-se ali
Quieta
Provocatoriamente quieta
Ao Sol fraco de fim de Setembro.
Sobre o banco do jardim
Lado a lado abraçados
Blusa e saia / casaco e calça.
No chão
Lado a lado também
Dois pares se sapatos
Um de tamanho e modelo para homem
Outro de tamanho e modelo para mulher.
Peça escultórica de escola impressionista !?
- Num jardim público ?!!!
Aproximei-me mais e entre as calças e a saia
Num pequeno pedaço de papel “transparente “ li :
Subimos ao céu mas pouco demoramos
Conservai nossos únicos bens !
Reis Caçote
13 - FELIZES
Se às estátuas que enfeitam os jardins
Onde crescem as flores e árvores
E a miséria
Perguntassem se eram felizes
Certamente ouviriam e veriam como eu
Um não plasmado nos seus lábios de musgo
E veriam lágrimas a pingar nos lagos !
Reis Caçote
14 - CALMOS SONHOS
Belos e calmos serão vossos sonhos
Prolongados que são pelos profundos sonos
Quase intermináveis !
Eu mal durmo
Com cada vez maiores pesadelos !
Por isso me levanto cedo
E com vontade de me não deitar.
Prefiro estar acordado… sempre…
Mesmo na noite
Que alguns querem artificiosamente aumentar !
Estar aqui fora ao Sol com outros
Abrir novos espaços com outros
Para poisarem as pombas brancas que
Cansadas
Escorraçadas
Sobrevoam todo o Mundo !...
Reis Caçote
15 - DIA DE NATAL
Seis anos de idade…talvez
Um metro de cidadão
Dentro de um arremedo de camisa
E dumas esburacadas calças
Que mal chegavam aos pés nus
Frios
Como esta manhã de 25 de Dezembro.
De peito côncavo
Esquivando-se ao frio
De mãos nos bolsos vazios
Fugindo ao frio
Olhava :
O outro menino à sua frente parado.
Dirigiu-se a ele
De mãos frias nos bolsos vazios
Colocou seu pé nú
Ao lado da bota nova
Azul
Do outro menino.
Espreitou
De um e outro lado
Será que sorriu ?!
Parecendo satisfeito com a análise.
Tirou uma das sujas mãos do buraco-bolso
Coçou sua cabecita suja num gesto-hábito
Dos sempre em dificuldade,
E correu passeio adiante
Com o Natal nos olhos
Em busca de umas botas azuis !...
Reis Caçote
16 - E SE…
E se
Um ministro do ultramar
De Salazar
Das guerras coloniais
Fala em paz e democracia
Isso será demagogia ?
E se
Quando dás uma moeda
Ao miúdo pedinte
E lhe recomendas que é para um bolo
Isso não será o F.M.I. ?!
E se
Um desconhecido
À mesa do café
Vinte paus na mão
Para uma bica de dez
Optando entre receber o troco
E o perder a camioneta
Resolveu pagar o teu café
Isso é impulse?!
II PARTE
17 - TROVOADA
O dia todo para lá do castelo
Fizeram-se e desfizeram-se
Velos de nuvens de lã branca
Que subiam…subiam
Com seus rostos deformados
E enormes narizes.
O Sol, farto daquele jogo de aparece-esconde
Desapareceu de vez por detrás da orada do Anjo.
E a avó Zéfa
Encolhida na sua quase cegueira
Parecia esperar pelos anos
E pelo fim
Dentro do seu xaile preto.
Baixo e prolongado
O primeiro arrastar dos móveis do céu
A seguir à luz do grande fósforo lá fora riscado.
- aí a temos !
- Deus te guie !
A luz intensa e o ruído entraram atenuados
Pelos filtros dos ouvidos e olhos da avó Zéfa
De rosário na mão
Segurando entre dois dedos uma Avé-Maria segredada:
- avé Maria
Cheia de graça
(baixinho)
O Senhor é…
Luz intensa a iluminar tudo
Pelas frinchas da madeira da porta e da janela
E pelos defeitos das telhas, num telhado sem forro.
BUMMMMMMM !
- Santa Bárbara Bendita
Que no Céu estás inscrita
Com papel…
BUMMMMMMMMM !
- ai valha-nos Deus !
- … em papel e água benta…
E o garoto calado
A tentar entender tudo aquilo:
A Santa Bárbara lá em cima
Ao pé do campo da bola
Fechada numa capela sem janelas
Todo o ano até Setembro !
BUMMMMMM !
E nova faísca para lá do castelo
E a Santa Bárbara todo o ano prisioneira
Protectora das trovoadas
Nada de atender à frágil súplica da avó Zéfa !
. Coitados dos que andam na lavoira !
- Deus queira que não l’es aconteça nada!!!
18 - RIO LIS
Suporto menos cada dia que passa
Essa tua indolência de boi castrado
A roçares-te, impotente
Pelas ervas e areias das tuas margens.
Com teu ventre pútrido
De escamas quase ausentes
E olhos turvos
Abandonas-te
Para o encontro sempre marcado
Com a quase moribunda
Outra parte da lenda.
Não tens o direito
Só porque os poetas te enlearam
Nas suas odes-feitiços
De quase insensivelmente deixares morrer
Sem protesto
Tua amante.
E sem protesto também
Para a morte te encaminhares!
Tens que acordar para a Vida
Nem que para tanto tenha de insultar-te !
Em vez de te entregares ao Mar
De sexo pendente e abandonado
Terás que recusar por algum tempo
Esse regaço de sal
E vires cá acima
Espumando de cansaço e raiva
Arrastando os salgueiros que ainda insistem
Vaidosos
Em pentear seus verdes cabelos
Mirando-se no espelho cada vez mais baço
Que estilhaçará
Como os frágeis diques
Que insistem em prender-te
Frágeis demais para deter tua revolta !
Ressuscitarás à passagem
Qual Messias que recusa ser crucificado ao mar
Tua companheira de lenda
E abraçarás teus irmãos de caminhada
Anónimos
Restituindo-lhes a esperança
De te encontrarem como vivo irmão !
Se necessário…pede ajuda ao Mar !!!
19 - APELIDO
Ao fim de tantos anos de procura
Incessante noite e dia
Pareceu-me ter conseguido
Finalmente
Após uma longa noite de insónia
A solução para violar
Definitivamente
A fanática rigidez da composição do meu nome:
Vou passar a nele incluir
A partir de agora
Homenagem tardia a minha Mãe
E a minha vontade também
O apelido de Caçote!
20 - O ELEITO
Para festejar
D’Aubusson
Sua vitória eleitoral
Fez uma festa ao contrário,
Os foguetes não subiram
Desceram !...
21 - SINOS OU ANJOS
Irei continuar a não ouvir
Os sinos das torres das igrejas
As chamadas à oração dos minaretes das mesquitas
Ao cântico das sinagogas
E a estar atento
Aos suspiros dos "anjos" !
22 - DEUSES
E por que não podemos ser
Um deus
De que se possa não gostar ?!
PARTE III
23 - ALVORADA
Vou expulsar de vez
Esta sensação de tristeza de
Fim de tarde cinzento
Vestir meus olhos de cristais de orvalho
Para receber-te alegremente
No vestíbulo da noite
Edificar contigo
Uma alvorada de Alegria !
24 - CANSADO
Despenteei teu cabelo
A escorrer pelas encostas da noite
Mesmo as madeixas de lua prateadas
Procurando tua boca com sabor a rio
Que beijei
Cansado
Ao amanhecer
Com a ternura fresca de meus lábios orvalhados!
25 - SEPARAÇÃO
Ao fim do dia
Cansados
Decidiram inventariar seus bens:
Tinham-se apenas um ao outro !
Resolveram ali mesmo separar-se !
26 - DE NOITE…AMAR
Quando na rua faço amor
Com a noite
Finjo bater palmas au guarda nocturno
Para a manter acordada
Pela noite fora !
27 - DELIRIO
No apogeu do delírio febril
Esticava-me na noite
Enorme
Tentando chegar ao Sol e
Pôr a roupa a enxugar
De suor frio ensopada
Do outro lado do mundo !...
28 - EMERSÃO
Estou a ressuscitar
Nesta desesperada emersão
De voluntário afogamento
No oceano verde
De teus olhos multicores !
29 - GRUTA DE FOGO
Deixa-me descer contigo
Essa gruta de fogo
Que ateámos
E onde nos perderemos
Quando nos encontrarmos !
30 - BUSCAR-TE-EI …
Poderás não acreditar
Mas foi este meu último soluço.
Na procura de novas lágrimas
Talvez encontre a razão da alegria !
Buscar-te-ei então
Definitivamente
Ruborizado e trémulo
Como da primeira vez !
31 - TEUS LÁBIOS
Quando a nave cósmica de
Teus lábios de pétala
Poisam nos meus
Despertam
vibrantes e libertos
hinos de esperança
Todas as orquestras
síncronas
De meu corpo-universo!
32 - POEMA DE JULHO
Existe agora
Esta sensação de queda
No escuro que vem
Com sabor a calafrio
Da raiz de minha incapacidade
De cortar os pulsos
Nas arestas do fogo que acendi
Em Julho
Debaixo de forte bátega de chuva, hoje de lágrimas
Que não deslizam !
33 - IDADE PRIMAVERA
Mal tinha esboçado o gesto de espreguiçar
Um bocejo de sono leve e já vinha pelo ar
A borboleta sem corpo
apenas asas transparências
Maravilhosamente grandes
A arrastar a manhã colorida
de luz que meu leito invadiu
Fresco
De lençóis de folhas verdes
De margem de regato e
De idade primavera !
34 - TEU VERBO
E …
No final do longo dia de luta dura
Cai a noite tristeza
Estendendo uma negra asa
Sobre teu corpo exausto.
Apenas sobre o corpo !
Mas …
A serena manhã de sempre
Continua no teu sorriso
Na tua sensibilidade
E no teu verbo.
Que nenhuma asa negra
De noite imerecida
Conseguiu alterar !
35 - FLORES DE FEVEREIRO
São raras em Fevereiro
As flores !
Mas num gesto de magia
Em 11 de aniversário
Sobre o primeiro bocejo matinal
A natureza espalhou
Pétalas brancas aos milhões
Numa tentativa corajosa
De mudança do cenário habitual.
Corajosa, simpática tentativa
Mas frustrada
O acto anterior ainda continuava !
36 - BUSCA NA NOITE
Pelos interstícios da noite cálida
De pirilampos no silêncio
Fui tacteando corpo
que inventei…
Fresco e perfumado
A emergir das águas do rio
calmo, sensual…misterioso.
Encontrei apenas
Bruscamente desperto pela dor
Provocada por afiada garra de silva
E sabor a sangue no dedo.
…
Insistirei em procurar-te
Em todas as noites de calor
E pirilampos no ar
Esteja ou não o dedo sarado…
Hei-de encontrar-te a emergir das águas !
37 - ORIGINAL
No teu aniversário
Original vai ser minha prenda !
Aquela estrela mais brilhante!...
38 - LAGRIMAS
Lágrimas :
Chuva salgada
Tempero de alegria e dor
Que não pode ser
Dos anjos ou das estátuas !
39 - FRUSTRAÇÃO
Grande é agora a frustração
Do meu amigo e vizinho!
Era apolítico.
A sua politica era o trabalho
Fazia questão de recordar.
Era também contratado a prazo
Para além de apolítico.
Na passada semana
O contrato terminou
E o empregador não o renovou !
40 - DESPEDIDA
Não houve exactamente um adeus !
Mas deixei de ver por momentos
Com os olhos quase a se afogar
Nas lágrimas que não corriam !
41 - O LAMENTO
Se soubesses poeta Grande
De sensibilidade infinita
O quanto sofro de incapacidade de
Ao menos contigo me parecer,
Certamente desculpa me pedirias!
Mas ainda bem que não sabes
Enquanto sofro e procuro melhorar
Vou inventando
As pedras e os musgos cobertos de flores
As arvores vestidas de frutos
E de pássaros
Com a noite infestada de duendes
Que raivosamente afasto com o bico da lapiseira !
42 - PROTESTO CANINO
E o cão ladrava ladrava furioso
Junto ao pedestal da nova estátua
Aguardando inauguração !
Será que também o cão não gosta do homenageado ?!
Ainda hoje não tenho a certeza
Se era gato escondido ou
Seria mesmo rejeição canina !
43 - AS SERRAS
As serras
Das alturas cansadas
Desceram às aldeias e cidades e
Enterraram seus pés
Nas frescas águas dos rios !
44 - OS PLANALTOS
Os planaltos
Ficaram-se pelo caminho
Já cansados da descida e
Ali adormeceram !
45 - OS DESERTOS
Os desertos
Desistiram de ser serras
Suados e logo secos
Sob aquele calor excessivo
Que os incendeia e desidrata !
46 - OS RIOS
Os rios
Procuram-se uns aos outros
Como loucos irmãos dum mesmo ventre e
Quando se encontram pensam
Que voltaram a ser um só
No seio do Universo !
47 - OS MARES
Os mares
Ávidos insaciáveis de rios
Para abrandar sua sede salgada
Esquecidos que já rios foram e
Berços de Lua que agora os comanda
Perderam seu mistério de superfície e
Resolveram que no Verão iriam servir
De fresca e salgada banheira
À multidão !
48 - E EU
E o que a mim sucedeu
Pequeno nada
Perdido no tempo e espaço
A inventar inversões de magnitude universal
E a não ser capaz de mudar a direcção de teu olhar
E o ritmo do teu coração
Apenas perdeu o domínio do seu !
49 - CONSELHEIRA…A NOITE
E a noite desceu
Sobre meus olhos cansados
Do Sol
E da ausência dos teus.
Esperava-a negra e opaca
Ocultando todos os seus
E meus mistérios.
Foi crescendo…
Quase como se do dia prolongamento
Com seus olhos brilhantes
Grandes…
Deste tamanho…
De que não consigo ver o limite.
E o esperado descanso de meus olhos
Foi um adiado projecto !
A noite nem sempre é boa conselheira
E muitas vezes é ainda
Pior companheira !
se verá
Se tenho ou não razão AMANHÃ SE VERÁ
Algo de anormal se passa
Na fluidez do espaço.
De anormal e desagradável.
Desde a noite passada
Algo começou a decompor-se
Como corpo celular em desagregação.
Ou será apenas invenção
Resultante
De cansaço ?
De incerteza ?
De fragilidade ?
Não ! É ainda cedo para pensar em desilusão…
Amanhã se verá, se tenho ou não razão !!
50 - POR ENTRE OS DEDOS
Tentei segurá-la na mão
Que com força fechei
Pensando que a tinha conseguido apanhar
No momento que pareceu passava perto.
Para a ver de mais perto
Ver sua cor
E aspirar seu odor
Fui abrindo a mão devagar…
Muito devagar…
A mão vazia e igual
Desenganou-me na violência:
A felicidade escapara por entre os dedos !
51 - AO POETA
Ao poeta tudo é permitido
Ao poeta nem tudo é perdoado.
E aqui é que se ordenam ou complicam
E o poeta faz as suas opções
Cómodas ou incómodas.
O poeta pode ser irreverente´
E fá-lo algumas vezes fingindo.
O poeta gesticula e grita
Sem que canse os braços e a voz.
O poeta inventa para si um espaço
Onde nem sequer se consegue encaixar.
O poeta “desencadeia” e guerras “faz”
Só para sentir o prazer de construir a Paz.
O poeta inventa uma flor impar
Mesmo quando não tem a quem a dar.
Do poeta o que me agrada afinal
É o afirmar-se ou negar-se sem que de tal
Faça regra ou ritual !
52 - POETA E POESIA
Provavelmente até terão razão e
Na busca de novos caminhos para a Poesia
Tu não passarás de uma utopia
Saída de minha irreverente (ou interessada ?) invenção.
E esses teus olhos ternos não serão reais
Fazendo parte do conjunto dessa imagem
Que eu fui construindo dessa miragem
Feita só de detalhes virtuais.
Sê-lo-ão do mesmo modo teu ar terno
Que existirá apenas a meus olhos
Esta vida quase só feita de escolhos
É bom estar em teu espaço tão ameno.
És capaz de ser a desilusão
A negação do mito criado
Pela minha frágil invenção.
Desilusão ou não és tu
Ultrapassando largamente qualquer invenção !
53 - MÁQUINA DO TEMPO
Criei a máquina do tempo
Em noites de insónia e cansaço
E nela me sentei para descansar.
Fiz um programa de pormenor para a largada
Em direcção ao futuro contigo de mão dada !
Em verdade o programa falhou
E a máquina nem sequer arrancou!
54 - EM VÃO
Durante anos a fio
E a frio
Fui vencendo a tentação de procurar
E encontrar
Um tema constante
E consistente
Para sobre ele escrever !
Em vão !
Escrevia, quando o fazia
Sobre o que em cada momento surgia e sentia.
Insignificâncias quase sempre
Por incapacidade estrutural
Ou vocacional
Para escrever sobre o transcendente.
E quando escrevia era sempre
Podes crer
Era para do acto tirar algum prazer.
E tirei-o ! E tiro-o sempre que escrevo!
55 - PEGO NOS TEUS POEMAS
Quando a noite impiedosa
Engole a última réstia de luz
E no calendário imaginário
Que me suplicia sem dó´
Risco mais um dia
Um dia qualquer
Em que permaneci só.
E pelo espaço de meu ser
Destinado a permitir tudo o que é mau
Deixa que nele cresça uma dor aguda
E uma raiva surda
Por não ter a capacidade e a coragem
De me contentar com tua imagem !
Dou comigo a insultar-me intimamente
E a me acusar de ser como todos
Sem algo de especial e diferente !
Então pego nos teus poemas
Que leio
Releio
E quero que eles sejam tu
E eu deles fazer parte
E só quando forçado a acreditar
Os aceito no seu no seu significado real
Da expressão e sensibilidade feitas Arte !
56 - CORAÇÃO LOUCO
O que será preciso fazer
Ou não fazer
Para que este louco coração
Pare de me obrigar a sofrer ?
Era bem tempo já
E com mágoa o confesso
De tornar real a frieza
Mas não obtenho sucesso !
E se a ideia mais frequente tem a ver
Com o atraso com que parti
Logo outra se lhe segue e me sossega:
Assim sofrerás menos tempo
É assim melhor para ti !
Mas por que hei-de sofrer
Se o que procuro é a felicidade ?!
Resposta não há ! Quem me a dará ?
57 - COMETAS
Do que sobre cosmografia aprendi
E nunca estudei
Foram os cometas que mais gostei !
Ao contrário das estrelas e planetas
Uns das outras dependentes
Os cometas vagueiam pelo universo
Aparentemente livres e sem órbita definida.
Quisera eu na vida ser um cometa !
Afinal descubro que não passo
De um vulgar e sedentário satélite
Mortal e umbilicalmente ligado a este planeta!
E como se isso não bastasse
Entras tu no meu cósmico espaço
Como se do Halley se tratasse e
Em vez de me levares
Na tua viagem louca
Abandonas-me quase sempre
Invariavelmente sem promessas
E um sabor amargo na boca !
58 - TEM CALMA
…mesmo assim sofrendo
Como cachorro acabado de desmamar
Sempre me vou prometendo
E enganando
Tem calma isto há-de mudar !
Mas o quê há-de mudar ?!
Eu ?
Tu ?
Ambos ?
Eu só ?
Tu só ?
A perguntas sem resposta
Como estas
Sendo afinal bem pouco
É tudo quanto me resta !
… será mesmo tudo o que resta ?!
59 - PAUSA POETICA
Durante nosso encontro na gelataria
Confessei-te e é verdade
Que tinha parado com a poesia !
Não por me sentir doente fisicamente
Só que não andava nem ando bem
Psiquicamente.
A poesia de que sou capaz
Que devia ser de horizontes ilimitados
Resume-se por inteiro a ti
Nestes devaneios tresloucados.
Qualquer dia ainda aceito
Para descanso meu e algum cinismo
Que afinal o que me proponho
É a prática do masoquismo !
E isto me assusta, podes crer
Por comigo tal prática nada ter a ver !
60 - CARDOS NO CAMINHO
Eu sei que assim o que faço
É de cardos e silvas encher meu caminho !
E sei que terei de o percorrer
Descalço e nu
Desde que me reste a esperança
De no final estares tu.
Bem mais me foi prometido
E bem menos me foi dado
Custando muito aceitar
Já vou ficando treinado.
Treinado mas não acomodado !
61 - AMAR-TE
Amar-te
É o que a cada instante me prometo
Amar-te
É o que neste momento quero
E o que amanhã quererei
Amar-te
E não o fazer em segredo
Quero amar livremente
Sem qualquer partícula de medo.
Amar-te
Como amo a vida, o ar, o Sol e o Mar
Amar-te
Desta forma simples e franca
Como a gaivota ama o mar
Amar-te afinal
De todas as formas
E as que estão por inventar.
Mas que inventaremos um dia
Tal como o fazemos agora… na Poesia !
62 - TALVEZ UM DIA
E enquanto me não convenço
De que tal possa suceder
Vou registando o que penso
Sobre ti…sobre o amor…até ver !
Até ver por quê ? Até ver o quê ?
Se amar-te é tudo o que quero fazer ?
Amar-te sempre e de todas as formas
Com a ternura que mereces
Com o carinho que tenho Amar…
Teu pensar privilegiado
Tua sensibilidade incomum
Fundir no teu o corpo meu
Num definitivo abraço e
Dos dois corpos ficar só um !
Amar-te sempre e de todas as formas e
Sermos ambos a definir as normas.
Amar-te ao alvorecer
Com o primeiro raio de Sol
Sobre a relva de um jardim
Ou sobre milhões de pétalas espalhadas
A servirem de lençol !
Amar-te sempre e de todas as formas
Do sol posto ao fim do outro dia
Desde que sintamos prazer e alegria
E que o amor seja sempre companhia.
Para que não seja apenas amor
E seja também Poesia !
Talvez um dia…
Será um dia !
63 - CORPO ? VERDADE ?
De olhos cansados vou
Teu corpo inventando !
Em traços largos e breves registo
A suavidade dos contornos
Que mal se notam na planura da tela !
Aparecem
Na extremidade de meus dedos
Duas gotas de cristal que coloco
Uma a uma na “cavidade” orbital.
Mas de repente decido
Por uma questão de dignidade
Desistir de teu corpo inventar
Se ele não corresponde à verdade.
E quem sabe a Verdade de teu Corpo ? Ou do meu ?
64 - OUTRO CORPO ?
Num pedaço de cartão
Os lápis de guache criaram
Caído no chão
Um corpo disforme
Sem mãos sem braços
Sem coração !
Apenas uns pés nus
Espreitando sob um amontoado de trapos
Sem categoria e feitio definidos
Vencem o cinzento do asfalto
E aconselham o silêncio.
Um corpo desenhado e cansado
Está presente nos degraus
Do edifício da vida que o não entendeu !
Nem eu …!
65 - SE CALHAR
A promessa de calor do Verão
Que se perfilava no zénite do teu olhar
Deixou-me um céu com nuvens
Ameaçando futuro incerto
Sem Verão sem Primavera
Se calhar só de Outono e Inverno
Se calhar Se calhar…
Um Futuro se calhar !
66 - ATÉ VER
Foram sempre os espaços ocupados
Por muita gente e diferente
O meu lugar preferido.
Não em busca de confusão
Nem à procura de ruído
Apenas na multidão podia
Se quisesse ficar escondido !
Esse hábito foi mudando
Está mudando
Até quando? até quando ?
E agora sem querer
É só que me encontro
Até ver Até ver !
Só
E até ver
Sem querer !
67 -ALI, DO LADO DE FORA
23 horas e 30 minutos
Ali
Do lado de fora
Cai a noite sobre corpos
Que se refrescam nas esplanadas
Sobre corpos que se dobram
Sobre as máquinas
A desenhar figuras geométricas
No aço ou no vidro
Corpos que de tão cingidos
É difícil saber se são dois se um só
Bocas que se buscam ardentemente e
Mãos que inventam poemas
Nas pontas dos dedos trauteando
Melodias de amor
No percurso dos corpos
De fim de Junho
Nem todos estão perfumados e
O perfume é-lhes transmitido pelo amor.
Mesmo que dure só até final de Junho !
Ou até ao fim da noite !...
68 - FIM DE JUNHO
Por que seria amarga a
Última amêndoa que restava !?
Por que seria triste
Meu último olhar !?
Por que só agora
Mais que ontem
Neste final de noite de Junho
Onde nem sequer o calor tem a
Coragem de ser real ?!
Por que este final de Junho
Há-de ser de coragem irreal
E a última amêndoa que me restava
Tinha um sabor amargo
Anormal ?!
69 - PROMESSA
Prometera há pouco não escrever mais hoje.
A meia noite vinha e vem aí
Por isso eu prometi.
Eis que de repente
Sem qualquer razão aparente
Desvio os olhos do livro que estava a ler
E olhei em volta :
Quarto razoavelmente iluminado
Móveis quase inexistentes
Duas cadeiras de fórmica e pés tubulares
E por aí espalhados livros
Por ler e já lidos
Um saco de recordações
Uma esteira de palha
Um quadro mal pintado
Na técnica a que alguém chama gestual
E eu sentado no colchão
Assente directamente no chão
Vestindo apenas o relógio
E de bloco e lapiseira na mão:
Serei uma visão erótica ou de evidente solidão ?!
70 - FOTOGRAFIA
… e por que hei-de admitir
Só por que é real
Que a noite lá fora
Está escura e fria
E não poderá estar
Se eu decidir pensar
Que a noite está bestial
E com um brilho como se fosse dia ?!
Quem me impedirá de um dia
Da altura deste 2º andar
Se decidir à noite
alterar
Sua real fisionomia ?!
Aí está o que é impossível
Ao fotógrafo fazer !
Mesmo usando os mais sofisticados materiais:
Alterar à noite fotografada
As suas cores reais !
Será por isso que um dia deixei a fotografia ?!
71 - AINDA O SONHO
E ao meu sonho subo
Correndo
Pela espiral do meu grito
Para do ponto mais alto
Ver teus olhos de afago
E então acordar
…serenamente !
72 - SÃO DE INSÓNIA
São de insónia a quase totalidade das noites
Que tristemente recordo.
São de insónia os vincos que rodeiam meus olhos
De raiva incendiados.
São de insónia meus passos incertos
Pelas manhãs mal acordadas
São de insónia e de revolta
Estas pertinazes incapacidades de
Violar o jardim mais próximo
E
Ao alvorecer apanhar a rosa
Ainda quase em botão
Orvalhada e
A colocar entre os cabelos !
73 - OUTRO OU O MESMO
E o sonho persistindo
Pela noite e madrugada
Colocou sempre nos meus olhos
Teu rosto que me sorria
E teus braços que se abriam… esperando-me.
Acordei sem alma e
Sem corpo sensível
E à minha frente apenas
Uma mistura incompleta
De várias tintas
Que não fugiram do caixilho !
De ti só o sonho resta !...
74 - EU SEI QUE
Eu sei que não devo construir
Ilusões injustificadas.
Eu sei que talvez nem mereça sequer
Uma réstia de esperança.
Eu sei que
Eu sei que
Eu sei que
Mas sei também que
Me não deve ser negado o direito
De aspirar a ser feliz!
75 - BREVE ADEUS
Durante todo o tempo
Que o debate durou consegui
Sem esforço
Assistir e atentarão que se passava
E simultaneamente construir
Com menos esforço ainda
Um castelo de cristal
Que sobrava de teus olhos
E contigo nele couberam
Dentro dos meus
Adquirindo um novo brilho.
Mas um breve adeus te levou
E o castelo de cristal não passou
De duas lágrimas
A rolarem pelas faces !
76 - É NESTAS NOITES
É nestas noites de solidão
Com o vento em espasmos de espaço e
A chuva em orgias de charco e
O ribombar dos obuses cósmicos em delírios de ruido e luz
São os meus companheiros
Que me trazem sobressaltos
Reis Caçote
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